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22 de outubro de 2020

DOCENTES NA CRISE DA PANDEMIA E O DESAFIO DO ENSINO REMOTO


Rilva Lopes de Sousa Muñoz

O problema colocado pelo professor convidado para uma atividade de Aprendizagem Baseada em Problemas em um curso promovido pela Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas da Universidade Federal da Paraíba na semana passada foi o dilema de voltar à sua prática de professor nas atividades presenciais no pós-pandemia.

Ele não destacou que o problema mais crítico já foi enfrentado por todos nós. 

Nós nos aventuramos na educação virtual pela primeira vez por causa da COVID-19 e temos estado online com o tipo de cursos imersivos tentando prover o nosso melhor. Mas grande parte da instrução remota que muitos professores experimentaram fora da sala de aula física oferecerão a seus alunos não será nada mais do que aulas por videoconferência complementadas por atividades de sala de aula invertida, ferramentas de gamificação e discussão assíncrona em fóruns no sistema SIGA-A ou no Moodle Classes.

É isso levanta que toneladas de questões, desde como os professores e universidade tratam as avaliações dos alunos até como as instituições tratam as avaliações dos professores pelos alunos. Penso que uma questão mais fundamental que a volta às atividades presencial (excetuando a questão sanitária se não houver como obter uma vacinação eficaz) é a seguinte: a exposição forçada e a experimentação com várias formas de aprendizagem habilitada pela tecnologia levarão professores e alunos a ver a educação online de forma mais favorável - ou menos favorável? Para mim, essa é a real questão.

Que impacto essa imersão emergencial no ensino on-line/modo à distância adaptado de nossa universidade e muitas instituições pode ter sobre a confiança do corpo docente e dos alunos no aprendizado mediado pela tecnologia? Acreditamos que o resultado final (reconhecendo que pode levar algum tempo até que possamos julgar) será mais professores acreditando na qualidade do aprendizado on-line e querendo incorporar o melhor do que pode fazer em seu ensino, uma área cinzenta na distinção entre on-line e presencial e um fechamento da lacuna de qualidade percebida por todos nós? Será que isso poderia produzir maior ceticismo sobre a eficácia do aprendizado habilitado pela tecnologia, seja porque a experiência para instrutores e alunos não atingiu a maior parte dos docentes sem literácia para ensino remoto? A nossa instituição tem preparado seus professores para ensinar nessas novas formas, mas alguns cursos são bons, como este de “Metodologias ColaborATIVAS”, enquanto outros estão no limite do mecanicismo.

Portanto, o desafio não será a volta ao ensino presencial (ou híbrido), como postulou o professor convidado. O dilema é o que estamos passando agora e passamos desde março deste ano de 2020. O dilema foi patente quando fomos encarregados de desenvolver o plano para colocar o ensino on-line imediatamente em um semestre suplementar e depois mais outro. Muitos professores estão exaustos porque seus recursos estão muito aquém da necessidade. Há colegas que não suportam mais esta sucessão de semestres suplementares remotos. Há alguns que também estão entusiasmados porque é sua experiência que torna esse pivô possível. Os gestores da nossa universidade devem reconhecer a experiência de suas próprias unidades on-line e apoiá-las para que um tempo pessoalmente opressor não se torne uma crise profissional.

As unidades do campus que oferecem suporte à educação on-line costumam ter recursos insuficientes nos melhores momentos, sem o investimento institucional necessário para alcançar uma educação remota de qualidade. A resposta da COVID-19 torna isso pior, não melhor. Designers instrucionais e professores on-line são profissionais que se destacam em um momento que destaca a expertise que trazem, sabendo que seu tempo, energia e talento podem fazer toda a diferença para seus alunos e para nós, os professores que fomos colocados pela natureza nessa situação inusitada. Uma dessas instrutores é a Professora Carol Kruta. O curso ao qual me referi foi diferente dos demais, dialógico e dinâmico.

Sempre existe uma chance de que alguns professores que resistem em usar a tecnologia para facilitar seu ensino tenham mais probabilidade de abraçar suas práticas de ensino mais recentes após a pandemia. Mas isso não representa um dilema, pelo contrário. É uma oportunidade que resultou do enfrentamento da crise. Este será um resultado mais provável se a universidade estiver vigilante em ajudar o corpo docente a aprender e usar ativamente as ferramentas de tecnologia educacional disponíveis para auxiliar os alunos a terem sucesso em seus cursos. Será importante para as instituições incentivar os alunos a compartilharem seus comentários semanalmente sobre as experiências de aprendizagem que seus instrutores estão moldando para eles usando a tecnologia. Esse é outro dilema real que se apresenta. Quando o corpo docente pode colocar seus egos de ensino de lado e usar feedback negativo do aluno para melhorar suas práticas de ensino remoto, os alunos se beneficiarão e, com sorte, o corpo docente também, porque aprenderão a melhor forma de atender às necessidades de aprendizagem de seus alunos.

Tenho pensado muito sobre isso e me perguntado se chegamos ao ponto de inflexão em que a tecnologia realmente seja realmente incorporada em nossas abordagens educacionais como o o que estão prevendo ser o “novo normal”. Essa crise mostrou que o ensino on-line realmente tem um potencial inexplorado para apoiar o desempenho dos alunos e ajudar os gestores da instituição a  resolver a lacuna de competências. Eu tenho essa visão em que o on-line ajuda as escolas a serem mais flexíveis de várias maneiras. Mas isso acontecerá após passada essa fase que estamos vivenciando. Haverá novas formas de trabalhar. Isso não é um dilema. É um desafio.

Parece que estamos nos movendo em direção ao aprendizado híbrido. A menos que todos nós nos tornemos enclausurados por muito tempo, a crise da COVID-19 provavelmente acelerará esse processo. Para professores e líderes de campus, acredito que isso exigirá mais atenção aos fundamentos de um bom ensino e aprendizagem, bem como mais preparação para o ensino em ambientes on-line. As pessoas querem ver isso como um ponto de virada para a educação on-line - o momento de brilhar ou tropeçar. Em vez de ver isso, precisamos ver como uma oportunidade para as instituições se reorganizarem em torno de mais tecnologia, como uma chance de liderar com mais humanidade. A pedagogia deve sempre conduzir a tecnologia, nunca o contrário. Portanto, não há dilema pedagógico na volta ao presencial, seja de que modo ocorrer essa volta.

Minha opinião no grupo pequeno da telerreunião baseada na dinâmica de Aprendizagem Baseada em Problemas foi esta, mas foi voto vencido pois os colegas pareceram não considerar que contestar o problema colocado pelo professor convidado não seria confrontar, e sim colocar posições diversas. 

Imagem: ISTOCKPHOTO.COM/MARTINWIMMER

18 de julho de 2020

NA REAL, O QUE É GENOCÍDIO?


Profa. Dra. Rilva Lopes de Sousa Muñoz

De grande repercussão, tanto no âmbito nacional quanto internacional, foram as declarações recentes, em plena pandemia, do controverso ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, ao tornar públicas críticas de extrema gravidade ao governo brasileiro usando a palavra “genocídio” para se referir às mortes causadas pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, na doença pelo Coronavírus 2019 (COVID-19) em todo o Brasil. Para usar a terminologia no contexto jurídico, nesse caso, o ônus da prova recai sobre o acusador, e não sobre a parte supostamente culpada.

Basicamente, ao que parece, o douto ministro do STF não sabe o que é genocídio. Ou terá sido uma declaração decorrente de dissonância cognitiva? Ou, o que é pior, talvez de tendência ideológica?... Esta é uma palavra "genocídio", de significado complexo, ainda não foi inteiramente esclarecido pelos estudiosos do tema. A palavra "genocídio" não existia até 1944. É um termo muito específico cunhado pelo advogado judeu polonês chamado Raphael Lemkin (1900-1959), que descreveu as políticas nazistas de assassinato sistemático durante o Holocausto, que assassinou aproximadamente seis milhões de seres humanos, entre judeus, ciganos, pessoas de orientação homossexual, pessoas com deficiência e opositores políticos. Raphael Lemkin  formou a palavra genocídio combinando -geno, da palavra grega para raça ou tribo, com -cide, da palavra latina que designa o ato de matar. O genocídio é um crime reconhecido internacionalmente, em que atos são cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Genocídio é, atualmente, uma palavra usada para significar o que o emissor quer que ela signifique, como qualquer outro modo de comportamento humano, sobretudo na política. Chamar o outro de genocida é uma forma de desumanizá-lo. Desse modo, o significado da palavra genocídio passou a permear o domínio da interpretação. É genocida quem o interlocutor chama de genocida. Por que o ministro Gilmar Mendes não atribuiu o rótulo de genocidas aos governadores e prefeitos do Amapá, Distrito Federal, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e Santa Catarina, implicados no roubo de bilhões de reais durante esta atual pandemia por meio do superfaturamento e desvio das verbas que foram destinadas pelo governo federal aos estados e municípios para o enfrentamento à COVID-19? A resposta a esta pergunta provavelmente está no partidarismo e na politização das declarações polêmicas do referido ministro.

Por outro lado, e lembrando da Venezuela de Nicolás Maduro, lá não está havendo um genocídio? Ou, por ser um regime sanguinário, dito narcocomunista, promovido e apoiado por Cuba, Rússia, China e Irã, não preencheria os critérios desse crime contra a humanidade? Ninguém lembra que poucos anos atrás o presidente do Irã pregava que o Holocausto nazista nunca existiu realmente? Aquele presidente do Irã era um negacionista? Alguém esqueceu que muitos partidos políticos do Brasil defenderam e ainda defendem a narcoditadura de Maduro? O próprio ex-presidente Lula da Silva e seu partido, o "Partido dos Trabalhadores", apoiam inconteste e publicamente a ditadura genocida que ocorre na Venezuela. Alguém esqueceu que os venezuelanos estão buscando alimentos no lixo, em franco desespero, sem medicamentos e sem assistência à saúde durante esta pandemia?... Como mostrou artigo publicado pela BBC, os níveis de nutrição de crianças menores de cinco anos já são comparáveis ​​aos dos locais mais pobres do planeta. Estima-se que 70% das crianças venezuelanas encontram-se desnutridas. O próprio chefe da Organização dos Estados Americanos (OEA) comparou a crise na Venezuela ao genocídio em Ruanda. 

Não se pode esquecer que estados socialistas, marxistas-leninistas, stalinistas ou maoístas, promoveram assassinatos em massa durante o século XX. O Holodomor  (-holod significa fome, e -mor, que significa praga ou morte), que é considerado o primeiro genocídio do século XX (negado por intelectuais do Ocidente), foi um Holocausto Comunista em que ucranianos foram assassinados por Josef Stalin mediante inanição no período de 1932 a 1933, matando milhões de pessoas e seus efeitos se estenderam por gerações. A crueldade soviética destruiu a dignidade humana. O processo de Gâmbia contra Mianmar (antiga Birmânia), um país de maioria budista, iniciado em novembro de 2019 no Tribunal Internacional de Justiça de Haia, ilustra a importância política do genocídio entre nações, sendo a parte acusada liderada pela primeira-ministra de Mianmar e vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, Aung San Suu Kyi, que era tida como um símbolo internacional da luta pelos direitos humanos. Pode citar neste breve texto também  o genocídio no Camboja  comandado por Pol Pot, um membro do Partido Comunista francês que fora educado em Paris.

Esses atrozes governos, precisamente chamados de governos sanguinários, não foram genocidas? Basta ler o livro “Gulag, a History”, sobre  a máquina de assassinatos em massa montada pelo stalinismo. 

Portanto, o ministro Gilmar Mendes não parece saber o que é genocídio.

A definição do que constitui um crime contra a humanidade foi estabelecida nos Julgamentos de Nuremberg, uma série de julgamentos realizados entre 1945 e 1949, no tribunal militar internacional para julgar os crimes cometidos pelos nazistas, oficiais do partido nazista, bem como empresários, advogados e médicos que colaboraram ativamente com o projeto nazista. 

No entanto, apesar de esse ser o verdadeiro significado de crime contra a humanidade, os juristas de Nuremberg não haviam inventado nada de novo, pois enfatizaram as ideias do filósofo iluminista francês Montesquieu sobre o direito internacional, que ele descreveu como direito civil universal, no sentido de que todos os povos são cidadãos do universo. Matar alguém simplesmente porque ele existe é um crime contra a humanidade; é um crime contra a própria essência do que é ser humano. Não se trata de uma eliminação de indivíduos porque são adversários políticos, mas um crime dirigido contra a pessoa como pessoa, contra a própria condição humana da vítima. 

O genocídio, portanto, consiste em atos hostis inter-relacionados e sustentados por seres humanos contra certas categorias de outros seres humanos. Assim, o genocídio é um crime em uma escala diferente de todos os outros crimes contra a humanidade e implica uma intenção de exterminar completamente o grupo escolhido, constituindo o mais grave dos crimes contra a humanidade.

Em 1948, a Organização das Nações Unidas aprovaram um acordo internacional conhecido como Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, estabelecido como um crime internacional, que os países signatários se comprometeram a prevenir e punir.

A ideia básica do genocídio está muito além das preocupações partidárias (HUTTENBACH, 2007). Fundamentalmente, o ato de genocídio incorpora a disposição de um grupo de destruir um segmento inteiro da população humana. As ideologias – tanto de esquerda quanto de direita, nacionalistas e internacionalistas - forneceram racionalizações para eliminar seres humanos da população global. A palavra genocídio se tornou um grande estigma verbal, um termo usado para descrever qualquer ato inteiramente execrável e fascista perpetrado contra grupos minoritários que buscam afirmar sua identidade e legitimar sua existência. Mas a palavra genocídio foi alvo de uma espécie de inflação verbal, tornando-se uma hipérbole, da mesma forma que aconteceu com a palavra fascista nos dias atuais. A palavra genocídio tem sido aplicada de forma livre e indiscriminada a grupos tão diversos quanto os negros da África do Sul, os palestinos na Faixa de Gaza e as mulheres de uma forma geral, bem como em referência a animais, ao aborto, à fome e desnutrição mundiais, e a muitas outras situações e grupos. Em relação às mulheres, por exemplo, aparece a palavra gendercídio. Se genocídio é definido como destruição de grupos específicos, e o estupro é conceitualizado como um crime contra a autonomia sexual de um indivíduo, considera-se a ideia de que constituir uma violação contra todo um grupo, à semelhança do genocídio (VITO et al., 2009).

Aniquilação em massa ou seletiva dos habitantes de uma cidade, região ou país - por exemplo, assassinato em massa seletivo por causa do gênero, chamado "gendercídio" (WARREN, 1985), em analogia  com o conceito de genocídio. O gendercídio seria um termo gênero-neutro, em que as vítimas podem ser homens, mulheres ou pessoas não-binárias, como a comunidade LGBTQIA+, enquanto feminicídio é definido como o assassinato sistemático de mulheres pela condição se ser mulher. Contudo, para Souza (2018), gendercídio (ou generocídio) e feminicídio são os nomes que definem um mesmo fenômeno, o assassinato de mulheres por questões de gênero (SOUZA, 2018).

As consequências inevitáveis ​​desse mau uso da linguagem são a perda de significado e a distorção de valores. Por exemplo, há um grande perigo na maneira como a mídia aplicou o termo Holocausto à devastação causada pela epidemia de cólera em Goma, cidade da República Democrática do Congo, onde a doença é endêmica (DESTEXHE; SHAWCROS, 2014). Isso coloca o desastre sanitário que resultou da entrada maciça de refugiados de Ruanda como consequência do genocídio no mesmo nível do próprio genocídio, um crime em massa premeditado, planejado e executado sistematicamente. Colocou-se a ênfase na catástrofe das vítimas da cólera, embora isso desviasse a atenção do verdadeiro crime já cometido. O fato de a cólera não escolher suas vítimas de acordo com sua origem étnica foi inteiramente omitido. Por isso é que o significado essencial de uma palavra é perdido quando ela é usada para descrever qualquer desastre humano com um grande número de vítimas, independentemente da causa. Como consequência, nenhum indivíduo deve ser considerado culpado ou responsável porque a culpa é atribuída ao destino histórico e de "circunstâncias infelizes", "do clima da época" e, naturalmente, da ação incontida de vírus e bactérias.

No Brasil, o genocídio foi reconhecido como crime a partir da Lei 2.889 de 1956. O caso de genocídio de maior repercussão internacional no Brasil foi o chamado “massacre de Haximu”, atentado cometido por garimpeiros contra 16 pessoas da população indígena Yanomami em 1993. A Procuradoria da República no Amazonas reconheceu em 2018 que informações reunidas por meio de inquérito civil público, instaurado em 2012, que houve redução demográfica do povo indígena Waimiri-Atroari pela abertura de rodovias durante a ditadura militar no Brasil.Não há uma discussão internacional suficiente sobre "genocídio cultural", que é uma ameaça particular para as minorias indígenas do mundo (KINGSTON, 2015). 

No livro "O Mundo Indígena na América Latina: Olhares e Perspectivas", Paredes et al. (2018) analisam a dizimação de povos indígenas no continente, mas colocando o Brasil como o país onde a aniquilação dessas minorias foi mais intensa. Nos séculos 15 e 16, o contato europeu viabilizou a transmissão de doenças a comunidades previamente isoladas. Infecções dizimaram populações indígenas nas Américas do Sul e Central após a chegada dos europeus, que trouxeram vírus e bactérias mortais, como os agentes da varíola, sarampo, tifo e cólera, para os quais os nativos americanos não tinham imunidade. Estas epidemias de varíola também geraram narrativas de genocídio deliberado contra os americanos originais, mas historicamente são narrativas fundadas em uma mistura de fatos limitados e evidências circunstanciais que foram generalizadas. Supõe-se que foi um número significativo de indígenas e grupos, porém, até hoje não contabilizado, de índios vitimados por moléstias até então desconhecidas (ALMEIDA; NÖTZOLD, 2008).

A recente adoção da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas reconhece os seus direitos à cultura, à diversidade e à autodeterminação. Nesse sentido, Short (2010) argumenta que o entendimento dominante de genocídio como matança em massa é sociologicamente inadequado e está em desacordo com as ideias do autor do conceito, Raphael Lemkin. Até o momento, as abordagens sociológicas do genocídio, segundo o referido autor, falharam em apreciar a importância da cultura e da morte social para o conceito de genocídio. Ele considera que não há discussão suficientemente sobre processos culturalmente destrutivos, que não envolvem assassinatos físicos diretos ou violência, por meio das lentes analíticas do genocídio, especialmente quando se trata das experiências dos povos indígenas no mundo de hoje.

De acordo com o último censo demográfico, realizado em 2010 pelo IBGE, o Brasil 29,9% do número estimado para 1500, quando começou a colonização. Por outro lado, também é considerado por movimentos sociais que outro processo genocida é o da população negra e que, como afirma militante do Movimento Negro Unificado, “o projeto genocida da população negra está em vigor desde o dia 14 de maio de 1888”, segundo publicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sob o título de “Brasil: um país marcado pelo genocídio da sua população negra, pobre e periférica”, publicada em 2018 (LIMA, 2018).

Vergne et al. (2015: 517) afirmam que as práticas de extermínio no Brasil têm se dirigido a pobres, mas especialmente a negros pobres. Considerando a definição jurídica internacional de genocídio, eles fazem uma análise de como ocorre o aniquilamento desta população:

A caracterização de genocídio tem passado por dificuldades óbvias: ninguém deseja ser considerado genocida. Genocídio é uma forma de violência complexa; o efeito de um conjunto de práticas cotidianas baseado no desejo de eliminação, ou de afastamento, do outro e por isso consentindo, mesmo que silenciosamente, a sua eliminação. Embora a explicação do genocídio não possa ser reduzida ao desejo de destruição do outro, não pode operar sem ele.

Portanto, o termo genocídio, como é usado agora, perdeu progressivamente seu significado inicial e está se tornando perigosamente corriqueiro. Mais recentemente, em seu livro “Genocide”, Jones (2006) expressou preocupação de que o termo "genocídio" possa se tornar sem sentido se usado de maneira descuidada. O autor percorre um longo caminho desde o genocídio dos nativos americanos até o genocídio contemporâneo em Darfur, no Sudão, pelo governo do ditador Omar Al-Bashir.

A palavra "genocídio" é recente: apareceu apenas em meados do século XX. Raphael Lemkin (1900-1959), um advogado judeu polonês que, após o extermínio de judeus e minorias na Europa ocupada na Alemanha nazista, pressionou a comunidade jurídica por décadas e escreveu o livro “Axis Rule in Occupied Europe” (O Domínio do Eixo na Europa Ocupada) (1944). Neste livro, uma primeira definição de genocídio aparece como a destruição de uma nação ou de um grupo étnico em um plano coordenado de diferentes ações visando à destruição de fundações essenciais da vida de grupos nacionais, com o objetivo de aniquilar os próprios grupos.

Logo depois, em 1948, a Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Punição do Genocídio adotou o termo, dando-lhe um respaldo legal (ONU, sem data). A ONU definiu "genocídio" como um crime internacional que implica "a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso". A ONU detalha os tipos de atos que se enquadram na definição de perpetração de genocídio. Isso inclui matar membros de um grupo, tomar medidas para impedir o nascimento de um grupo, transferir forçosamente os filhos de um grupo para outro e causar sérios danos corporais ou mentais aos membros de um grupo. Essa definição de 1948 foi adotada em lei por 80 países e não foi unânime. A China e os Estados Unidos não são signatários dessa Convenção. 

Assim, o genocídio foi um termo concebido para denominar a destruição de um grupo nacional como um coletivo. O Tribunal Penal Internacional Permanente, um foro que passou a existir formalmente em 2020, por meio do Tratado de Roma, e com sede em Haia, na Holanda.

Genocídios ocorreram na Antiguidade, na Idade Média e nos tempos modernos. Coderch e Puig (2008), apresentam uma lista de possíveis - e, em alguns casos, controversos – genocídios ocorridos na história da humanidade, entre os quais podem ser citados: Midianitas (Bíblia, Números 31: 1), a Batalha de Melos (415 aC), Cartago após a Terceira Guerra Púnica (149-146 aC), o cerco e conquista de Jerusalém durante a Primeira Cruzada (1099), as conquistas mongóis / Genghis Khan (1190-1400), a conquista das Américas pelos espanhóis depois de 1492, a escravidão de povos africanos no Atlântico (1500-1890), o levante burguês durante a Revolução Francesa (1793-94),  a divisão da África após o Congresso de Berlim (1884-85), o domínio belga no Congo (1885-1908), a deportação dos armênios pelo Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial (1915-16), o terror stalinista no grande expurgo (1937-38), o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45),  as nações deportadas durante a guerra por Stalin (1943-44), como os Chechenos, Tártaros da Crimeia, por exemplo; o Khmer vermelho cambojano (1975-78), o massacre de etnias tutsis em Ruanda (1990-1994); o massacre na região curda do Iraque (1988), a dissolução da Iugoslávia (1991-1999).

De acordo com Kranz (2017), cinco genocídios estão em curso atualmente: o dos Rohingya em Mianmar; dos Nuer e outros grupos étnicos no Sudão do Sul; dos cristãos e Yazidis no Iraque e na Síria; de cristãos e muçulmanos na República Centro-Africana; e dos Darfuris no Sudão.

A maioria dos estudiosos do genocídio concorda que a ideologia desempenha um papel importante no genocídio e deve ser vista como uma força causadora importante - este é um quinto elemento. Certamente, uma política genocida é decidida por certas pessoas, detentores de poder no estado, e um processo genocida é iniciado e mantido por eles em cooperação com muitos outros em diferentes setores e em diferentes níveis da sociedade estatal (ZWAAN, 2014). Nesse sentido, no livro “Genocídio: A Retórica Americana em Questão” (POWER, 2004), a autora analisa a reação dos Estados Unidos, considerando sua imprensa, organizações internacionais e políticos, aos genocídios ocorridos no século 20. Para Santoro (2005: 494), a referida autora considera que a "norma é a não-intervenção da comunidade internacional em casos de genocídio, pelo menos até que a força da opinião pública leve os Estados mais poderosos a reagir".

O foco de Harff (2017) foi a definição de democídio em comparação com a definição mais restrita de genocídio. Na medida em que isso implica a morte direta de membros do próprio grupo, fala-se em democídio. Existe um objetivo normativo óbvio na Convenção sobre Genocídio, que é esclarecer as causas e manifestações do genocídio (neste ponto, a autora fala também em politicídio), de modo que as ações preventivas sejam justificadas e exigidas pelo direito internacional. Em resumo, o democídio conceitual incluiria todos os assassinatos em massa associados ao genocídio e ao politicídio, mas também muitos outros que não visam à destruição intencional de um grupo específico. E normativamente, seus objetivos também são um pouco diferentes. O estudo do democídio leva à condenação de governos porque correm o risco de matar um grande número de cidadãos, enquanto o genocídio visa ajudar a identificar governos específicos para crimes específicos contra a humanidade (HARFF, 2017).

Para outro exemplo mais recente, a mesma autora considera o genocídio do Camboja (1975-1979). Ela destaca que alguns estudiosos argumentaram que, segundo a Convenção sobre Genocídio, não ocorreu um genocídio no Camboja, porque as vítimas pertenciam ao mesmo grupo étnico que os autores do crime. Contudo, a linguagem da convenção não diz que o genocídio não pode ser cometido por pessoas de mesma etnia, raça, nacionalidade ou religião que as das vítimas. Assim, se essa lógica for considerada, os alemães que mataram alemães durante a Segunda Guerra Mundial ou os Khmers que matam Khmers no Camboja não podem ser contados como genocidas. No caso do Camboja, o conceito de "auto-genocídio" tornou-se parte do arsenal de definição de alguns estudiosos e assim, o conceito de democídio evitaria essa armadilha conceitual.

Ainda recorrendo a Harff (2017: 113), “qualquer situação interna de conflito carrega as sementes do genocídio”. Isso porque tipicamente as vítimas têm múltiplas identidades, portanto, gênero, cultura, status econômico/social e  afiliação política podem desempenhar um papel secundário na vitimização. No caso do Camboja, a intenção parecia irracional para observadores externos, como matar grupos leais, mas faz sentido quando se olhava atentamente a ideologia confusa do Khmer Vermelho. Essa era uma ideologia remanescente do jacobinismo, uma revolução que se autodevorou, no século XVIII na França para a queda da velha ordem. Assim, Harff (2017) chamou esse episódio genocida de "politicida", tendo cunhado este último conceito para explicar que as vítimas foram mortas principalmente por causa de suas afiliações políticas ou sociais. 

Voltando à questão inicial sobre a declaração do ministro do STF, o Sr. Gilmar Mendes, pode-se finalizar este texto com uma matéria jornalística. De acordo com o Jornal “Gazeta do Povo” (18 de julho de 2020):

“A desembargadora aposentada Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional, avalia que a política adotada pelo presidente Jair Bolsonaro para enfrentar a pandemia de coronavírus não configura genocídio ou crime contra a humanidade. Em entrevista ao portal O Antagonista, Steiner afirmou que a Corte de Haia não julga políticas, e sim crimes e pessoas. Para ela, cabe a Corte Interamericana de Direitos Humanos analisar a responsabilidade político-administrativa de atos que violem direitos fundamentais, como direito à vida e à saúde."

Por fim, uma vez tendo ensaiado o conceito de genocídio, cabe uma outra pergunta: Como foi que a palavra genocídio como hipérbole entrou na discussão política no que tange ao seu uso atual no Brasil no sentido da mortalidade por uma pandemia sem precedentes na história da saúde pública? Esta é uma pergunta puramente retórica, claro...

Referências

Almeida CS, Nötzold ALV. O impacto da colonização e imigração no Brasil meridional: contágios, doenças e ecologia humana dos povos indígenas Tempos acadêmicos 2008;  6: 1-18. Disponível em: http://periodicos.unesc.net/index.php/historia/article/download/431/440

BBC News Mundo. Coronavírus: pandemia agrava fome e desespero na Venezuela. 2020. Disponível em: encurtador.com.br/dqNTX. Acesso em: 18 jul. 2020.

Coderch PS, Puig AR. Genocide Denial and Freedom of Speech. InDret, 2008. Disponível em: https://indret.com/wp-content/themes/indret/pdf/591_en.pdf

Destexhe A, Shawcross W. Rwanda and Genocide in the Twentieth Century. Frontline Special reports. 2014. Disponível em: https://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/rwanda/reports/dsetexhe.html

Harff B. The Comparative Analysis of Mass Atrocities and Genocide. In: Gleditsch N. (ed). R.J. Rummel: An Assessment of His Many Contributions. 2017. SpringerBriefs on Pioneers in Science and Practice. Disponível em: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2F978-3-319-54463-2.pdf

Huttenbach Henry R., A Genocide Theory: in Search of Knowledge and the Quest for Meaning, Online Encyclopedia of Mass Violence, [online], 2007. Disponível em: http://bo-k2s.sciences-po.fr/mass-violence-war-massacre-resistance/en/document/genocide-theory-search-knowledge-and-quest-meaning

Jones A. Genocide: a comprehensive introduction. Londres e Nova York: Routledge, 2006.

Kingston L. The Destruction of Identity: Cultural Genocide and Indigenous Peoples. Journal of Human Rights 2015; 14:1, 63-83.

Kranz N. Four genocides that are still going on today. Business Inside 2017. Disponível em: https://www.businessinsider.com/genocides-still-going-on-today-bosnia-2017-11

Lima W. Brasil: um país marcado pelo genocídio da sua população negra, pobre e periférica. 2018. Disponível em: https://mst.org.br/2018/05/18/brasil-um-pais-marcado-pelo-genocidio-da-sua-populacao-negra-pobre-e-periferica/

Souza SMJ. O feminicídio e a legislação brasileira. Rev. Katálysis 2018; 21 (3): 534-543.

Paredes B. Damiani G, Pinheiro W, Nocetti MAG (Org). O Mundo Indígena na América Latina: Olhares e Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018. Disponível em: http://www.livrosabertos.edusp.usp.br/edusp/catalog/download/15/14/65-1?inline=1

Santoro M. Genocídio: A retórica americana em questão. Contexto int. 2005; 27 (2): 493-501.

United Nations Human Rights. Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide. Disponível em:

https://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CrimeOfGenocide.aspx

Vergne CM, Vilhena J, Zamora MH, Rosa, C. M. A palavra é... genocídio: a continuidade de práticas racistas no Brasil. Psicologia & Sociedade 2015;  27(3), 516-528.

Vito D, Gill A, Short D. A tipificação do estupro como genocídio. Sur, Rev. int. direitos human. 6 (10): 28-51, 2009.

Warren MA. Gendercide: the implications of sex selection. Front Cover: Rowman & Allanheld, 1985.

Zwaan T. On Genocide. An Introduction. Holocaust and Genocide Studies. 2014. Disponível em: https://www.niod.nl/sites/niod.nl/files/Introduction%20on%20Genocide.pdf

Matéria do Jornal Gazeta do Povo: disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/atuacao-bolsonaro-genocidio-tribunal-haia/ Acesso em 18 jul 2020.

Fonte da imagem: euromaidanpress

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22 de junho de 2020

IMPACTO ATUAL DO CONFINAMENTO DA COVID-19 SOBRE PESQUISAS

A atual cessação temporária de atividades presenciais tem sido um enorme disruptor das funções das instituições de ensino superior. O impacto dessa interrupção é altamente variável e depende, primeiro, da capacidade de cada um permanecer ativo remotamente nas suas atividades acadêmicas até o fim do isolamento social. Quem tinha pesquisas que exigem trabalho de campo, teve a coleta presencial de dados interrompida, ou substituída por uma coleta remota, em uma reformulação que nem sempre é possível. O objetivo deste vídeo é refletir sobre a execução de pesquisas científicas, como nossa atividade acadêmica, durante esta fase de confinamento, sobretudo quando se trata de pesquisas qualitativas. A apresentação deste tema continua no próximo vídeo.

19 de junho de 2020

Carta Aberta ao Coronavírus


Enquanto o Quênia fecha para impedir a disseminação do Coronavírus, um jovem queniano diz que seu país tem muitas outras ameaças com as quais se preocupar.
Poucos dias após o governo queniano começar a fechar escolas e aeroportos, e pedir às pessoas que ficassem em casa, o estudante Lucky Samuel Man'gera escreveu uma "carta aberta ao coronavírus", na sua conta de Facebook, contando sobre as ameaças e disparidades em saúde que existem no seu país, que tem múltiplos problemas crônicos e que matam pessoas todos os dias. 
O Quênia registrou cerca de 4.300 casos de COVID-19, com 119 mortes até este momento em que estou escrevendo esta postagem. O governo queniano implementou um bloqueio cada vez mais rigoroso, que agora inclui toque de recolher. 
Contudo, homens, mulheres e crianças são vistos nas ruas, comprando e vendendo produtos, embarcando em ônibus lotados e sem máscaras. Os sentimentos desse estudante do Quênia ressaltam as complexidades que as pessoas vulneráveis ​​enfrentam durante as epidemias e a necessidade de capturar essa complexidade para entender o alcance e o impacto da pandemia. 
O jornalista Eyder Peralta publicou uma entrevista com o espirituoso e resiliente estudante queniano, com o título “Maravilhas de estudantes universitários: no centro do Quênia, é necessário o bloqueio do COVID-19?” 
Entrevista: Peralta E. College Student Wonders: In Hardcore Kenya, Is COVID-19 Lockdown Needed? Publicado em 25 mar. 2020, 05h03 AM.
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17 de maio de 2020

Vieses da Comparação de Taxas de Mortalidade pela COVID-19 entre Países

As taxas de mortalidade por coronavírus variam significativamente entre os diferentes países. Se avaliarmos as taxas de mortalidade de dez países, por exemplo, e compararmos os seus índices, encontraremos diferenças estatísticas grandes. Mas existe uma incerteza considerável sobre as taxas exatas de mortalidade porque muitos fatores intervenientes afetam esses números. Em alguns países, todo mundo que morre após ter recebido diagnóstico de COVID-19 é registrado como uma morte pela infecção, mesmo que a doença não tenha sido a causa principal, enquanto outras pessoas podem morrer por esta doença sem terem recebido diagnóstico de COVID-19. A comparação discutida entre dois diferentes países neste vídeo é um exemplo de uma análise eivada de tendenciosidade, mostrando que há premente necessidade de transparência nas políticas de testes e nos relatórios das evidências, com apresentação, no mínimo, da idade, sexo, nível socioeconômico, grau de instrução, status clínico comórbido e acesso aos serviços de saúde das pessoas afetadas. Finalmente, como é a COVID-19 uma epidemia nova, é necessária uma vigilância contínua, com relatórios transparentes e precisos das características dos pacientes, de vários países, para melhor entender a epidemiologia global desta epidemia.

11 de abril de 2020

Estratégias de Ventilação Mecânica para Doentes com Covid-19


Esclarecimentos sobre estratégias de ventilação mecânica para doentes com Covid-19 pela médica pneumologista e intensivista Eliáuria Martins, professora de Semiologia Médica da Universidade Federal da Paraíba

Covid-19: Origem, Patogenia e Sintomas


Vídeo instrucional com a Profa. Eliáuria Martins, médica pneumologista e intensivista, professora de Semiologia Médica da UFPB, sobre a Covid-19