31 de março de 2019

Questões Propostas de História da Medicina em 2018.2


Expectativas de resposta para questões propostas de História da Medicina em 2018.2

1- Em sua origem, a Medicina Ocidental era uma prática essencialmente humanística. Suas raízes se assentavam no solo da filosofia da natureza e seu sistema teórico partia de uma visão holística que entendia o homem como ser dotado de corpo e espírito. Este foi o modelo, a concepção de médico e de medicina, que se manteve historicamente no Ocidente durante muito tempo. Quando e como houve rupturas e transformações nesse paradigma?

A evolução histórica do humanismo na medicina ao longo dos tempos na civilização ocidental passou de práticas baseadas no conhecimento filosófico, no solo da filosofia da natureza, e seu sistema teórico partia de uma visão holística que entendia o homem como ser dotado de corpo e espírito. Posteriormente, embora baseadas nas teorias médicas herdadas da Antiguidade greco-romana anteriores ao Cristianismo, as práticas passaram a ser fortemente influenciadas pela Igreja Católica, correlacionando-se as doenças à ação de maus espíritos e ao pecado. As observações e experimentações que levaram ao avanço das ciências foram retomadas apenas no período do Renascimento, momento de declínio do poder da Igreja, de mudanças sociais e de passagem para o Capitalismo, mas com retorno ao antropocentrismo. Com a Revolução Científica, entretanto, o desenvolvimento da anatomia e da fisiologia, com os reflexos do método cartesiano-newtoniano, levaram ao reducionismo, conduzindo a um modelo de atenção biologista e mecanicista, que se exacerbou no final do século XIX, com a consolidação da teoria microbiana e da teoria celular. Atualmente, a medicina ocidental está no meio de uma nova mudança de paradigma, à medida que se busca uma abordagem “holística” novamente, com um modelo integrativo biopsicossocial, centrado na pessoa, em que o paciente é visto como um todo e participante ativo em seus cuidados de saúde. A medicina de hoje tende a avançar do curativo para o preventivo, da medicina individual à coletiva, da ênfase pessoal à ênfase na comunidade, apontando para a necessidade da humanização no atendimento em saúde.

2- Foi durante o século XIX que os microrganismos ficaram conhecidos como sendo agentes causadores de doenças, ou “agentes etiológicos”. Comente dois estudos importantes daquela época que fortaleceram a teoria microbiana e a derrocada da teoria miasmática.

A transição da teoria miasmática para a teoria microbiana no final do século XIX e início do século XX foi amplamente documentada em relatos sobre diversos experimentos, desde a observação de microrganismos através de modelos rudimentares de microscópio, evidências de contágio, procedimentos para antissepsia, prevenção de infecção, descoberta dos agentes etiológicos das doenças infecciosas. Esta foi uma mudança radical na história da compreensão da doença, tratamento e prevenção, que marcou uma nova era na medicina. Dois estudos que podem ser citados são os experimentos de Louis Pasteur e os de Robert Koch. Pasteur, por exemplo, demonstrou, entre outros ensaios, que o crescimento de microrganismos em caldos de cultura não ocorria por geração espontânea, fervendo caldo de carne em um frasco especial com o gargalo em forma de S. Por sua vez, Robert Koch inoculou um rato com sangue de uma ovelha que morreu de antraz e o animal desenvolveu a infecção.
Diversos outros exemplos podem ser citados.

3- Segundo alguns pensadores, quanto mais se ampliam os conhecimentos médicos, maior a insatisfação da população com os profissionais da medicina. Acusações referentes a erro médico aumentam a cada ano. Com base na temática das transformações contemporâneas da relação médico-paciente, sustente a argumentação de que os médicos são o “bode expiatório” do sistema de saúde ou, ao contrário, que este argumento é uma falácia lógica.

A resposta poderá variar conforme a opinião de cada respondente. O que foi considerado na resposta a esta questão foi a coerência e plausibilidade da argumentação para demonstrar o pensamento.
Pode-se responder que o sistema de saúde é deficitário, mal gerido, não tem financiamento adequado, prejudicado pela corrupção sistêmica dos políticos e de empresários ligados a eles, mas que o médico como membro mais destacado da equipe de saúde sofre das críticas feitas ao sistema de saúde, no Brasil, Sistema único de Saúde (SUS), muitas vezes injustamente. Os médicos não querem cometer erros e não querem causar danos, tampouco querem dizer não aos pacientes, porém geralmente são criticados por não poderem fazer mais, sendo culpabilizados pelas falhas do sistema como um todo e pelas más condições de trabalho a que são submetidos. Atualmente tem ocorrido reações que constituem o que se denomina “medicina defensiva”, pelo  medo do médico de ser processado, o que influi nas tomadas de decisão de pedir mais exames, fazer mais encaminhamentos, ou prescrever medicamentos. Por outro lado, culpabilizar o médico é improfícuo, e a maioria dos profissionais de saúde, em uma mesma situação, cometeria os mesmos erros e que talvez a situação, e não o profissional, seja o responsável.
O médico é o profissional que vivencia mais intensamente os problemas dos serviços de saúde, onde atende a um elevado número de pacientes, sem receber remuneração condizente com seu encargo e sem possuir condições para exercer a sua profissão com a qualidade a população requer, por falta de recursos técnicos dessas unidades e pela lotação desses espaços. Recentemente, os médicos também têm sido vítimas de agressões por parte de usuários do sistema de saúde e de seus familiares enquanto no exercício da profissão. Os médicos têm sobrecarga de trabalho e são pressionados a ter múltiplos vínculos laborativos, perdendo sua posição de profissional liberal e passando a ser assalariados em um processo progressivo de precarização do trabalho médico.
As soluções determinadas pelos últimos governos incluíram criar indiscriminadamente novos cursos de medicina para expandir o número de vagas nas faculdades, tornando o Brasil o primeiro em número de escolas médicas, a maioria particulares, mas sem a devida qualidade de ensino e treinamento, o que apenas intensifica os problemas. 
Por outro lado, nesta questão proposta, se pode responder que os médicos têm se envolvido mais frequentemente com erros diagnósticos ou complicações de procedimentos por negligência e inaptidão, a partir de uma formação médica de má qualidade. Também ocorrem muitos erros relacionados à deficiente comunicação e às dificuldades de habilidades sociais dos médicos. Além disso, médicos em geral têm uma visão reducionista e fragmentada do ser humano, não se interessando por abordagens centradas na pessoa do doente e em carreiras voltadas à atenção primária à saúde. O médico se beneficiaria da hegemonia de classe no sistema capitalista, por geralmente fazer parte ou se identificar com a categoria elitista, e não se dedica ao conhecimento das necessidades sociais da população. 
O saber e a prática médica então plasmados na sociedade como uma tática de institucionalização, de dominação e hegemonia sobre os demais profissionais de saúde e, portanto, sendo considerados os sujeitos dominantes desse campo, são responsabilizados/culpabilizados de forma correspondente a esta posição na grande área da saúde. Nesse sentido, há um sentimento de onipotência e onisciência por parte dos médicos, que além de não se darem conta de suas limitações, muitas vezes atuam de forma arrogante, afastando a imagem respeitada de outros tempos.
É pertinente argumentar também que muitos médicos negligenciam suas condutas com os pacientes utilizando-se de desculpas como más condições de trabalho e até má remuneração, esquecendo preceitos morais e éticos essenciais no cuidado.

4- Uma das máximas de Michael Balint diz: “O remédio mais usado em Medicina é o próprio médico, o qual, como os demais medicamentos, precisa ser conhecido em sua posologia, reações colaterais e toxicidade”. Comente esta assertiva e o contexto histórico em que foi colocada.

Esta é uma famosa frase em medicina. O conceito do uso do médico como medicamento, do médico Michael Balint, em meados no século XX, ocorreu quando o modelo biomédico começava a apresentar sinais de crise, e ele teve a ideia de ajudar os médicos a se comportarem de modo mais sensível na relação com seus pacientes. Balint foi o primeiro a explorar a subjetividade na relação médico-paciente no contexto da prática clínica geral, em que essa relação permanece central, apesar das enormes mudanças sociais e políticas que afetaram a prestação de cuidados de saúde no século XX. Neste conceito, Balint contribuiu para uma compreensão mais ampla da importância da personalidade do médico, seus sentimentos e reações, como uma ferramenta de diagnóstico e tratamento. Contudo, as atitudes do médico poderão ser terapêuticas ou não, e produzirem configurações benéficas ou maléficas no curso do adoecer. Ele acreditava que o médico é sempre, em maior ou menor grau, “iatrogênico” e que deve ter este fato em mente ao tratar o paciente. Balint considerou também que o tratamento não devia visar somente ao paciente, mas além disso, ao relacionamento formado.

5- Comente a seguinte assertiva de Jacques Le Goff aplicando-a à história da medicina na Idade Média: “O século XIII é o século das universidades porque é o século das corporações”.

Fruto da intensificação da vida urbana, as Universidades tiveram como ponto de partida uma estrutura análoga às corporações de ofício (chamadas de universitas). Até século XII o ensino era monopolizado pela igreja. Aos poucos, este poder passou a ser delegado a cidadãos leigos. As primeiras universidades se desenvolveram na Itália na Baixa Idade Média. Estes foram em Salerno no decurso do nono século e Bolonha no século XI. A de Salerno foi a mais antiga escola médica da civilização moderna. Estas universidades começaram como guildas escolásticas e se desenvolveram em analogia com as guildas de comerciantes que surgiram nos séculos XIII e XIV na maioria das grandes cidades europeias. Foi a partir da Escola de Salerno, no final dos anos 1260, que ocorreu a institucionalização do ensino médico no contexto universitário e as corporações acadêmicas de artes e medicina começaram a se formar.

Imagem: Gravura de Matthaeus Merian, 1646. Um farmacêutico oferecendo um remédio para um homem doente na cama, enquanto um cirurgião, supervisionado por um médico, amputa a perna do paciente sentado. 

22 de março de 2019

A Extensa Carga Horária Curricular do Estudante de Medicina

Por Breno Coelho Batista Cavalcante Nogueira
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB

A graduação em medicina constitui uma jornada longa, extenuante e que requer preparo físico e psicológico por parte dos graduandos para que seja bem-sucedida. 
O Ministério da Educação define uma carga horária mínima para os cursos de graduação em Medicina de 7.200 horas, sendo o curso de graduação com a maior carga horária no Brasil, que é considerada excessiva (GONZAGA et al., 2014)
Na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) não é díspar desta realidade. É possível deparar-se diariamente com discentes queixando-se da carga horária extensiva, da quantidade excessiva de aulas e provas, algo que muitas vezes não é suficientemente considerado pelos pelo corpo docente e gestores acadêmicos. Nesse contexto, a reforma curricular nos cursos de Medicina é bastante discutida e visa a encontrar maneiras de promover a formação de um profissional humanizado (PAIVA et al., 2018), além de buscar aprimorar o equilíbrio entre vida profissional e vida pessoal de cada estudante.
O curso de medicina da UFPB conta com uma carga horária de 9.440 horas letivas. Esse número é alto se comparado com a carga horária de outros cursos como odontologia, psicologia e medicina veterinária, todos com carga horária mínima de 4000 horas-aula. O tempo de formação prolongado no curso de Medicina pode ser desgastante para o próprio estudante (MAGALHÃES et al., 2017), tanto no aspecto físico, como no psicológico. Em virtude disso, para muitos essa rotina de aulas e provas representa a causa da abdicação de outros afazeres (por vezes, atividades básicas e necessárias como alimentação e sono) em vista da necessidade de acompanhamento dos assuntos lecionados e da preparação para os testes, o que pode representar um impacto negativo na saúde mental do discente. Estima-se que de 15% a 25% dos estudantes universitários apresentam algum tipo de transtorno psiquiátrico durante a sua formação acadêmica, sobretudo transtornos depressivos e de ansiedade (COUTO et al., 2014).
Ademais, ao escolherem a carreira médica, muitos estudantes são movidos pelo desejo de curar, ajudar ou salvar. Entretanto, o aprendizado centrado no diagnóstico e tratamento de doenças pode levar o médico em formação a negligenciar aspectos da subjetividade do paciente (PAIVA et al., 2018). Por outro lado, como uma forma de se “proteger” do sofrimento do paciente, muitos estudantes optam por apartar-se de sua subjetividade, em especial, da dimensão afetiva. Esse conjunto de fatores corrobora para um enfraquecimento gradual da relação com os pacientes, muito embora seja paradoxal um declínio dessa habilidade com a progressão do curso. Ainda que o tema da humanização em saúde seja extremamente complexo e decorrente de múltiplos fatores, um enfoque puramente tecnicista e as influências do currículo oculto podem colaborar para um processo de desumanização ainda na fase de graduação (BENEDETTO; GALLIAN, 2018). Em 2015, o curso de medicina da Universidade de São Paulo sofreu uma redução de 30% no número de disciplinas, que passaram a ser ofertadas de forma mais integrada e buscando melhorar os aspectos humanísticos (VASCONCELOS et al., 2015). 
 Em suma, é de vital importância que esse tema seja discutido dentro e fora das salas de aula, com diretores, docentes e com os próprios discentes a fim de se buscarem alternativas para o problema. Dessa forma, com o tempo restante, os discentes podem engajar-se em projetos de extensão, pesquisa, participar de forma mais frequente de eventos científicos, além de poder destinar mais tempo à sua vida pessoal. Talvez esse seja também um aspecto para melhorar o caminho a ser trilhado pelo estudante de graduação em Medicina.

Referências
COSTA, G. P.; HERCULANO, T. B.; GAMA, A. L. H. et al. Enfrentamentos do Estudante na Iniciação da Semiologia Médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, 42 (2): 79-88, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022018000200079&lang=pt. Acesso em 20 set. 2018.
BENEDETTO, M. A. C.; GALLIAN, D. M. C. Narrativas de estudantes de Medicina e Enfermagem: currículo oculto e desumanização em saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, 22 (67): 1197-1207; 2018. Disponível em: http:// scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832018005007104&lang=pt. Acesso em 18 set. 2018.
VASCONCELOS, T. C.; DIAS, B. R. T.; ANDRADE, L. R. et al. Prevalência de Sintomas de Ansiedade e Depressão em Estudantes de Medicina. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, 39 (1): 135-142, 2015. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbem/v39n1/1981-5271-rbem-39-1-0135.pdf. Acesso em 17 set. 2018.
MAGALHÃES, P.; GOMES, G. B.; NICOLAU, S. N. Tempo de Graduação em Medicina: uma Estimativa em 15 Coortes de Graduados na Universidade Agostinho Neto, Angola. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, 41 (4): 615-622, 2017. Disponível em  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022017000400615&lang=pt. Acesso em 18 set. 2018.
GONZAGA, H. N. KORMANN, S. O. A carga horária excessiva do curso de graduação em Medicina e sua repercussão na Saúde Mental do estudante. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, 6 (13): 156, 2013. Disponível em http://stat.cbsm.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/2994. Acesso em 15 set. 2018.

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