28 de março de 2008

Manifestações incomuns de condições comuns

Caso clínico apresentado por Natália de Andrade Costa, do quarto período de Medicina - UFPB (Grupo de Estudo de Semiologia NKRL).
R. F. S., 31 anos, branca, feminino, recepcionista, natural e residente em Sousa-PB, admitida no HULW/UFPB com dispnéia de três anos de duração, com início no segundo mês de sua segunda gestação. O quadro era de dispnéia e fadiga, desencadeado por esforços físicos (tarefas de casa e caminhadas). Durante esses três anos, o quadro evoluiu para dispnéia de repouso, associada “chiado no peito” e tosse com expectoração amarela durante episódios recorrentes de piora. Fez uso de Diprospan, com melhora parcial e temporária. Foi internada duas vezes na cidade de Souza pelas crises. Passou a usar "bombinha" por prescrição médica, mas ainda não obteve melhora. O quadro persistiu e após consultar um pneumologista e usar outros três medicamentos sem melhora, foi internada no HULW. A paciente relatou grande sobrecarga emocional recente por conflitos na família.
Outros sintomas: astenia, ganho de peso, otalgia, pirose , empachamento, epigastralgia, insônia e irritabilidade. Não soube informar antecedentes de alergia. Seu irmão apresentou quadro de dispnéia durante a infância. Seu avô tem o mesmo problema. Mora perto de uma fábrica de doces. Fumou cinco cigarros por dia durante cinco anos. Refere contato com pássaros em casa.
Ao exame físico, p- 85bpm; PA- 90/60 mmHg; T- 36,5° C; FR- 32irpm (taquipnéica);
peso- 62.5kg; estatura- 1,52 cm ; IMC- 27,05 Kg/m² (sobrepeso). Em bom estado geral, consciente e orientada, fácies incaracterística, postura indiferente, biótipo brevilíneo, mucosas hipocoradas (+/4+) e úmidas, panículo adiposo em excesso e bem distribuído ; musculatura normotrófica e sem deformidades esqueléticas, ausência de edema subcutâneo, extremidades com coloração e temperatura normais. Tórax de conformação normal, ausência de tiragens e expansilbilidade conservada, frêmito tóraco-vocal normal, murmúrio vesicular presente e simétrico, sem ruídos adventícios. Exame cardiovascular e abdome normais.
As hipóteses de internação foi de asma brônquica. Porém, eosinofilia periférica (9%) chamou atenção, levando à hipótese de síndrome de Churg-Strauss. Radiografia simples do tórax normal. Tomografia da face: cornetos nasais hipertrofiados, espessamento do revestimento mucoso paranasal, hipotransparência de seios maxilares. Tomografia de tórax e espirometria solicitadas não foram feitas.
Comentários: Neste caso, verifica-se má resposta à terapêutica em uma paciente com asma, que teve início na vida adulta. Pode-se chamar de asma grave o que esta paciente tem? A asma grave é freqüentemente definida como a persistência de sintomas, apesar de elevadas doses de corticoterapia inalada. Cerca de 5% dos doentes com asma não atingem o controle da doença. Este foi o caso desta paciente? Ou se trata de um outro diagnóstico, que não asma? Esta paciente não estava recebendo doses elevadas de corticoterapia inalada, então não se enquadra comoa sma grave, córtico-resistente.
É importante verificar se há fatores que contribuam para o agravamento. Mas, é preciso distinguir também dois subgrupos da asma de difícil controle: um verdadeiro e um falso. Este último inclui a asma afetada por fatores não relacionados com a doença que levam a uma dificuldade de resposta ao tratamento. Esta é a primeira pergunta do clínico.
O correto diagnóstico de asma com a exclusão de outras doenças com clínica semelhante é fundamental. Será que se trata de asma? Esta é a segunda pergunta. Há comorbidades com sintomas semelhantes (rinossinusite, polipose nasal, refluxo gastro-esofágico, bronquiectasia). Há fatores agravantes não controlados? Fatores alergênicos, asma ocupacional, medicamentos (antiinflamatórios não-esteróides, betabloqueadores, IECA). E ainda: será que está havendo adesão ao tratamento prescrito?
E se não se trata de asma, será outro diagnóstico confundindo-se com asma? Doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), fibrose cística / bronquiectasias, insuficiência cardíaca congestiva, tumores afetando vias aéreas centrais, hiperventilação/pânico, aspergilose broncopulmonar alérgica e síndromes eosinofílicas pulmonares.
A radiografia do tórax é um exame clássico na avaliação de patologia pulmonar, podendo logo de início excluir uma série de doenças com sintomas semelhantes à asma. Em alguns doentes,
podem-se observar sinais indiretos de hiperinsuflação, com retificação dos arcos costais, aumento dos espaços intercostais, aumento da transparência dos campos pulmonares e retificação do diafragma. A tomografia computorizada é uma das ferramentas mais úteis para visualizar as vias aéreas, permitindo a visualização destas e do parênquima com maior detalhe. Os indivíduos com asma têm vias aéreas mais espessas na tomografia de alta resolução que indivíduos sãos, estando o grau de espessamento relacionado com a gravidade da doença e a obstrução ao fluxo aéreo. Jensen et al (2002) avaliaram alterações na tomografia na asma grave e concluíram que os achados mais compatíveis eram o espessamento brônquico (100%), o encarceramento aéreo nas imagens em expiração (87%) e o estreitamento do lúmen brônquico (40 %).
Já a síndrome de Churg Strauss, hipótese aventada na enfermaria, uma doença auto-imune e de etiologia indeterminada, é de diagnóstico é difícil, não somente pela raridade, mas também pela sobreposição clínica e anatomopatológica que pode haver entre diferentes vasculites. Descrita primeiramente em 1951 por Churg e Strauss, foi definida como angeíte granulomatosa, determinada por três critérios maiores: presença de vasculite necrotizante, infiltração tecidual eosinofílica e de granulomas extravasculares. Em 1990, o American College of Rheumatology revisou tais critérios, sendo que pelo menos quatro dos seis critérios diagnósticos seguintes devem estar presentes para o diagnóstico da síndrome de Churg-Strauss: asma grave a moderada, eosinofilia periférica (> 10%, mono ou polineuropatia, infiltrados pulmonares transitórios, comprometimento dos seios paranasais e exame anatomopatológico obtido de biópsia demonstrando vasos sanguíneos com eosinófilos extravasculares (BARROS et al., 2005). A paciente não preenche os critérios para a síndrome, que é rara.
Assim, trata-se de uma paciente com asma brônquica que não respondeu bem ao tratamento ambulatorial, provavelmente pelo uso inadequado do tratamento e problemas emocionais associados. Não se investigando os fatores agravantes da doença, passa-se a buscar outros diagnósticos mais raros e muito menos prováveis, embora a asma seja cada vez mais reconhecida como uma síndrome que como uma doença específica.
Contudo, é preciso lembrar de um dos princípios da investigação diagnóstica ("Leis da Medicina de Loeb"): "Coisas comuns ocorrem mais frequentemente; coloque suas apostas em manifestações incomuns de condições comuns ao invés de manifestações comuns de condições incomuns". (JONES, 1977).

BARROS, J. M.; ANTUNES, T.; BARBAS, C. S. V. Churg-Strauss syndrome. J. bras. pneumol. 31 (1): s27-s31, 2005.
JONES, W. H. Hippocrates: Ancient Medicine. Loeb Classical Library, 1977
JENSEN, SP, Lynch DA, Brown KK, Wensel SE, Newell JD. High-resolution CT features of severe asthma and bronchiolitis obliterans. Clin Radiol 2002; 57:1078-85

27 de março de 2008

Relato Resumido: Sinal "Sister Mary Joseph"

Grupo de Estudo de Semiologia Médica "NKRL"
Caso clínico apresentado por Keilly Wanderley (quarto período - Medicina UFPB)
MCXF, 87, feminino, casada, internada na enfermaria de clínica médica do Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW)/UFPB com icterícia progressiva há 15 dias, dor abdominal, anorexia, perda de peso, astenia, alterações do paladar (disgeusia), náuseas e vômitos, empachamento, colúria e hipocolia fecal. Paciente em mau estado geral, intensamente ictérica, pálida, emagrecida, deprimida, sem edemas e linfadenomegalias periféricas ou estigmas de hepatopatia. Abdome plano, presença de pequeno nódulo firme, indolor e avermelhado em cicatriz umbilical; sem visceromegalias ou tumorações profundas.
Diagnóstico definitivo: Câncer gástrico avançado com metástase hepática, obstrução de vias biliares e carcinomatose peritoneal com extensão por contiguidade à cicatriz umbilical. O nódulo umbilical resultante é chamado de sinal da Irmã "Mary Joseph" ou Irmã Maria José (foto).
O nódulo da Irmã Maria José é uma massa umbilical de natureza metastática. Este nódulo é achado raro ao exame físico e pode ser o primeiro sinal de neoplasia intra-abdominal avançada, geralmente inoperável.
A observação do nódulo da “Irmã Maria José” deve ser considerada indicador de neoplasia intra-abdominal cuja origem pode ser principalmente o trato gastrointestinal (52%) ou ginecológico (28%).

25 de março de 2008

Semiologia Médica: Inaugurando o Semioblog

Inauguramos este blog, que chamaremos de SEMIOBLOG, com o objetivo de discutir temas de Semiologia Médica, postar arquivos de aulas de Semiologia, divulgar as atividades do Grupo de Estudos em Semiologia Médica (GESME), criado em 2007, apresentar temas de Semiologia Médica e fomentar o estudo sobre exame clínico e medicina geral para estudantes da área da Saúde.
Sejam bem-vindos!

Como preâmbulo, uma pequena introdução sobre aspectos gerais da Semiologia Médica.

Semiologia médica, ou semiótica, do grego semeion = signo = sinal, é a parte da medicina que estuda os sinais e os sintomas das doenças. Semiologia é uma verdadeira introdução à clínica médica, onde se estudam os sintomas, os sinais, a técnica de abordar e examinar o doente. É o estudo dos sintomas e sinais em sua fisiopatologia, e o estudo das síndromes clínicas gerais.
É uma disciplina fundamental, representa a “introdução” para a clínica, seja ela médica ou cirúrgica. É a preparação dos jovens alunos para o contato com o paciente, abrindo o “ciclo profissional” do curso e transportando o aluno das salas de anatomia e do laboratório de bioquímica, parasitologia e fisiologia, para o convívio com um novo mundo. Nos leitos das enfermarias, o aluno inicia o aprendizado que nunca se acaba, da clínica médica e da clínica cirúrgica.
Em termos gerais, a Semiologia compõe-se de duas partes: 1) Semiotécnica: é a técnica da pesquisa dos sinais, o estudo da técnica da exploração, e 2) Clínica Propedêutica (grego: klinike = leito ou cama; pro = diante; paideuein = ensinar), é o ensinamento clínico primário ou preparatório, destinado a reunir e explicar os sintomas e sinais de modo a chegar-se a um diagnóstico. Assim, a semiologia pode ser chamada de “a arte e a ciência do diagnóstico”. Para se chegar a um diagnóstico, começa-se pela pesquisa de sinais ou sintomas (semiotécnica), depois agrupam-se e interpretam-se (clínica propedêutica).
Assim, a semiologia deverá estar sempre dirigida para uma boa e completa observação clínica. Esta observação clínica, obtida segundo um método e uma técnica, levará ao diagnóstico. A semiologia é parte (e a primeira parte) da clínica. Sem ela nada se poderá fazer ou diagnosticar. É a “arte da diagnose” por excelência. Todavia, não deverão existir “propedeutas” ou “semiólogos”, mas apenas clínicos de boa formação propedêutica.
Emprega-se o termo “sintoma” de forma ampla e generalizada para se caracterizar qualquer manifestação mórbida. A rigor, os sintomas são subjetivos, percebidos apenas pela pessoa doente. Os “sinais”, ao contrário, são observados por outros e, em alguns casos, pelo próprio paciente. A dor e o prurido são sintomas; a icterícia, o sopro cardíaco e o edema são sinais físicos. Alguns fenômenos, como a febre, são, ao mesmo tempo, sinais e sintomas. Sintoma é a manifestação subjetiva, é o que o paciente relata que está sentindo e o que o médico vai analisar através da anamnese, com por exemplo, a dor, é um sintoma.
Sinal é a manifestação física objetiva, que é observada no exame físico do doente, como a cianose e o edema, por exemplo. Um sinal ou um sintoma que ocorra em determinado indivíduo não constitui fenômeno isolado: pode ter múltiplas interrelações, incluindo causas, fenômenos associados e efeitos. Poderão haver interrelações denotando vários tipos de distúrbios na fisiologia, mas há sempre um componente subjetivo, psicológico, às vezes mínimo, mas quase sempre importante.
Sinal patognomônico ( do grego pathos = doença e gnomon = indicador) ou patodiagnóstico é aquele que demonstra, de maneira quase absoluta, a existência de determinada doença, ou seja é o sinal bem característico, quase exclusivo de uma doença. Com efeito, o que é conhecido por achado patognomônico, quer seja um sintoma, quer seja um sinal clínico, indica fortemente o diagnóstico de uma doença, ou de uma síndrome, no decorrer da exploração semiológica do indivíduo. São achados patognomônicos especiais: a facies miastênica, o sinal de Romaña (Doença de Chagas), a podagra (gota), exoftalmia bilateral (doença de Basedow-Graves), sinal de Blumberg (apendicite), sinal do vespertílio (lupus eritematoso), sinal de Nikolsky (pênfigo), sinal de Auspitz (psoríase), sinal de Filatov (sarampo), estalido de abertura da mitral (estenose mitral), sinal de Corrigan* (insuficiência mitral), entre outros. (corrigindo erro: sinal de Corrigan indica insuficiência aórtica, e não insuficiência mitral)
Síndrome (do grego sin = com; dromos = curso), é um complexo sintomático, um quadro sintomático, é a associação de sinais e sintomas evoluindo em conjunto, provocada por vários mecanismos e dependendo de causas diversas. Exemplos: síndrome de hipertensão portal, cuja etiologia pode ser cirrose hepática, esquistossomose mansônica, fibrose hepática congênita; síndrome disabsortiva, que pode ser por pancreatite crônica, doença celíaca; síndrome edematosa, cuja causa pode ser insuficiência cardíaca congestiva, glomerulonefrite, disproteinemia, etc. Já o termo "doença", também um conjunto de sinais e sintomas, com a mesma evolução, porém, procedentes sempre de uma mesma causa específica.
O domínio da semiologia é muito complexo, e de aquisição demorada e trabalhosa, implicando o domínio de vários componentes: conhecimento da fisiologia normal e dos múltiplos mecanismos de doença, mestria dos métodos e técnicas de colheita de dados, sejam eles a história clínica, a observação psicológica ou o exame físico, e a capacidade de interpretação dos dados recolhidos.
Os objetivos pedagógicos da Semiologia Médica dividem-se em:
a) capacitação técnica: que se refere, essencialmente, à semiotécnica, ou seja, à capacidade de realizar corretamente a anamnese e as manobras do exame físico, aplicáveis na investigação dos principais sinais e sintomas apresentados pelo paciente;
b) capacidade de elaborar raciocínio diagnóstico: o que será aperfeiçoado ao longo do curso pelos conhecimentos assimilados no decorrer da Disciplina,sempre fundamentado nos conhecimentos das disciplinas básicas;
c) elaboração de diagnósticos sindrômicos e, na medida do possível etiológicos, a partir dos dados coletados à beira do leito;
d) desenvolvimento de uma boa relação médico paciente através do aperfeiçoamento de posturas e atitudes adequadas (a relação do estudante com o paciente e com os colegas, com os docentes e demais membros da equipe multidisciplinar).
e) orientação do estudante, no início de seus estudos clínicos, a desenvolver métodos sistemáticos e analíticos de exame do paciente e de anotar com clareza os dados resultantes;
f) Auxílio ao estudante na interpretação dos sinais e sintomas clínicos e correlacioná-los com seus recentes conhecimentos de Anatomia, Fisiologia e Patologia.

Lembre-se que a anamnese completa e um exame físico serão o seu principal instrumento de trabalho médico.