23 de novembro de 2009

Imagem semiológica: Erupção bolhosa

Paciente de 84 anos com erupção bolhosa
Paciente de 84 anos, feminino, apresenta erupção cutânea que começou há uma semana, localizada em sua mão direita inicialmente, mas progredindo para o braço, parte superior do tórax e abdome. A erupção é indolor, mas apresenta prurido intenso, que chega a limitar sua capacidade de realizar tarefas rotineiras. Ela não apresentou febre, nem história de trauma ou viagem recente. Vive sozinha e usa um aparelho de apoio para ajudá-la a se locomover em casa, contando com a ajuda de familiares e cuidadores para realização das atividades da vida diária. Há história de câncer de mama não-metastático com receptor estrogênico positivo, doença cardíaca isquêmica, osteoporose e insuficiência renal crônica. Usa aspirina, mononitrato de isossorbida, ramipril, sinvastatina, alendronato e um suplemento de cálcio. Seu câncer de mama é tratado com um inibidor da aromatase. Não houve mudanças recentes no seu esquema medicamentoso e não usa nenhuma medicação fitoterápica. Ao exame físico, a paciente apresenta-se em estado geral comprometido, debilitada, mas consciente e orientada. T=36,9°C; PA=146/88 mmHg; FR= 16 irpm. Ritmo cardíaco regular, sem sopros, B2 hiperfonética em focos de ápice, FC=88 bpm. Murmúrio vesicular presente e simétrico, sem ruídos adventícios. Abdome indolor e sem visceromegalias. Presença de massa fixa, indolor, de 3 cm, subjacente ao mamilo direito. Ausência de linfadenomegalias axilares. O exame da pele revela várias bolhas, pápulas e vesículas que variam em tamanho de poucos milímetros a três centímetros no braço direito, face anterior do tórax e abdome (Figuras acima). As bolhas e vesículas têm uma base eritematosa e contêm líquido claro. Não há envolvimento das mucosas. Sinal de Nikolsky ausente.
A referência da publicação onde este caso foi relatado originalmente será acrescentada depois, após chegada de uma hipótese diagnóstica.
28/11/09 - Biópsia de pele: Histopatologia de uma bolha subepidérmica demonstra rico infiltrado inflamatório na derme (figura abaixo)

02/12/09 - Este estudo de caso foi publicado originalmente por Tuyyab (2009) na home page Medscape. Referência: TUYYAB, H. An 84-Year-Old Woman With a Blistering Rash CME/CE.eMedicine Case Presentations CME. Disponível em: http://cme.medscape.com/viewarticle/712028 O diagnóstico foi penfigóide bolhoso. O diagnóstico diferencial inclui: pênfigo vulgar, dermatite herpetiforme e impetigo bolhoso. A paciente, neste caso, apresentava vários fatores sugestivos de um diagnóstico de penfigóide bolhoso. Sua idade avançada, o aspecto clínico das lesões de pele, e o início como uma lesão subaguda intensamente pruriginosa e erupções cutâneas não dolorosas foram compatíveis com o diagnóstico de penfigóide bolhoso, e uma biópsia de pele enviada para exame histológico de rotina, imunofluorescência direta, e os estudos de imunofluorescência indireta confirmaram essa hipótese. O esfregaço de cultura viral e bacteriana do líquido da bolha teve um resultado negativo, o que exclui um processo infeccioso (como herpes zoster). O penfigóide bolhoso é a doença auto-imune bolhosa mais frequente no mundo ocidental, com uma incidência estimada de 6 a 7 casos por um milhão na França e na Alemanha. É uma condição relativamente benigna, que tende a apresentar episódios recorrentes de remissão e recaída. Afeta mais comumente os idosos. Essa população é muito mais propensa ao desenvolvimento de doenças malignas e, por isso, uma análise mais aprofundada de uma possível malignidade associada deve ser realizada.

Referência TUYYAB, H. An 84-Year-Old Woman With a Blistering Rash CME/CE.eMedicine Case Presentations CME. Disponível em: http://cme.medscape.com/viewarticle/712028. Acesso em: 02 dez 2009.

19 de novembro de 2009

A propósito da prova de MCO2 em 16/11/09: Resolução comentada

Prova escrita de MCO2 (Pesquisa Aplicada à Medicina) em 2009.2 e sua resolução Na busca de converter um recurso tradicionalmente coercitivo, como a prova escrita, em uma ferramenta de aprendizado, introduzimos uma inovação no módulo de MCO2: a apresentação da resolução dos quesitos da última prova para, posteriormente, devolver a prova aos alunos, que poderão, assim, verificar seus acertos e erros. O objetivo é também o de tornar os alunos co-responsáveis no julgamento do seu aprendizado, revendo o problema e tendo mais uma oportunidade de aprender. PARTE I: Enunciados dos quesitos da prova realizada em 16/11/09
1- No quadro abaixo são fornecidos dados de uma amostra de pacientes atendidos no Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW) segundo as variáveis X: nível de glicose no sangue (mg%) e Y: sexo (M - masculino; F- feminino):
a) Com base nos níveis de mensuração, como as variáveis X e Y podem ser classificadas? b) Indique a medida de tendência central mais apropriada para as variáveis X e Y e as calcule. 2- Um grupo de 350 adultos participou de uma pesquisa onde foi feita, entre outras, uma pergunta sobre se a pessoa estava fazendo dieta alimentar. Os resultados segundo sexo são apresentados a seguir: a) Calcule a prevalência de pessoas que estão fazendo dieta; b) Calcule a prevalência de dieta entre homens: c) Calcule a medida de associação apropriada para este modelo de pesquisa 3- Qual o ponto de partida de uma pesquisa científica? 4- Que modelo de estudo vocês fariam para demonstrar que uma droga recentemente desenvolvida é eficaz no tratamento da obesidade? 5- O que leva o pesquisador a escolher um teste “paramétrico” ou um teste “não-paramétrico” para analisar seus resultados? 6- Descreva a diferença entre teste bicaudal e monocaudal no teste de hipóteses. 7- O que é reprodutibilidade de um teste diagnóstico e que modelo de pesquisa melhor avalia esta propriedade? 8- O fabricante de um medicamento divulga que este era 90% eficaz para a enxaqueca em um período de 2 horas. Um pesquisador resolve testar se essa propaganda é verdadeira e recruta uma amostra de 200 pacientes que estavam em crise de enxaqueca. Nesta amostra, o medicamento levou 160 pacientes à melhora total do quadro. Determinar se a divulgação do fabricante procede. 9- Um pesquisador pretende estimar a taxa p de pacientes com infecção hospitalar dentre os pacientes submetidos a cirurgias de médio porte no Serviço de Cirurgia do HULW. Ele adotou um grau de confiança de 95% e um erro amostral máximo de 5%. Calcule o tamanho da amostra necessário para este estudo. 10- Que critérios metodológicos e estatísticos se levam em conta na determinação de uma associação de causalidade entre uma variável independente (fator de risco) e uma dependente (desfecho) em estudos observacionais? PARTE II: Resolução dos quesitos
1- (a) Quantitativa contínua (b) Qualitativa dicotômica (c) X = Média = 278,5/24 = 116 e Y = Moda = F. 2- (a) Prevalência = 39/350 = 0,111 = 11% (b) Prevalência entre homens = 14/173 = 0,08 = 8% (c) Razão de prevalência = 14/173 dividido por 25/177 = 0,57. 3- A formulação do problema de pesquisa. 4- Modelo experimental. 5- Para sua aplicação, os testes paramétricos exigem que a variável em análise seja intervalar e as hipóteses sejam feitas sobre os parâmetros da população (média e desvio-padrão), daí o termo "testes paramétricos". Além disso, há outras exigências, como a de que a variável analisada apresente distribuição normal na amostra. Mas o que faz um pesquisador quando as pressuposições para proceder a um teste paramétrico não estão presentes na sua amostra? Para não violar esses pressupostos matemáticos, ele deve aplicar um teste não-paramétrico, que não exige que a variável em análise seja intervalar nem pressuposições a respeito da distribuição da mesma. Contudo, quando se pode aplicar testes paramétricos, estes são considerados mais poderosos na inferência estatística. 6- No teste monocaudal, a hipótese alternativa é uma desigualdade e a hipótese nula testa se um valor é maior ou igual ou menor ou igual ao outro; neste caso, o nível de significância é concentrado em um dos lados da curva. Deve-se usar o teste monocaudal quando existem informações prévias de que a diferença deve se dar em um determinado sentido. No teste bicaudal, a hipótese nula testa se um valor difere do outro, a diferença pode ser para mais ou para menos. Neste caso, o nível de significância é dividido nos dois lados da curva. 7- Reprodutibilidade é a confiabilidade, fidedignidade ou consistência de um teste e se refere à concordância ou precisão de resultados quando um exame se repete em condições semelhantes, nos mesmos sujeitos, mas em diferentes ocasiões. O modelo do estudo para esta pesquisa deve ser transversal. 8- Seja p a probabilidade de se obter a melhora da crise e enxaqueca pelo uso do medicamento. Então deve-se decidir entre duas hipóteses: H0 - p = 0,9 e H1 - p menor que 0,9. Escolhe-se um teste monocaudal, porque não há interesse em determinar se a proporção de pacientes que têm remissão pelo medicamento é muito baixa. Não se determinou o nível de significância, então se adota 5%. Assim: p = 90% = 0,9; n = 200, q = 10% Faz-se, então a aproximação da distribuição binomial à normal - média populacional = n.p - 200.0,9 = 180; desvio padrão = raiz quadrada de 200.0,9.0,1 = 4,24 Aplica-se a fórmula da conversão em escore z = -20 / 4,24 = -4,71. O z calculado é menor que o z tabelado, então rejeita-se H0, de que a melhora é de 90%, sendo na realidade, significativamente menor que esta. A propaganda do fabricante não procede (ou seja, não é verdadeira) de acordo com a pesquisa feita nessa amostra. 9- O tamanho da amostra para variáveis discretas (proporções) deve ser calculado pela aplicação da seguinte fórmula - n = z2 . p . q / e2, onde: n: tamanho da amostra e: erro máximo permitido da amostra (em porcentagem) z: intervalo de confiança padronizado (em desvios-padrão) p: proporção de situação de sucesso ou acontecimento (%) q: proporção de situação de insucesso ou não acontecimento (%) Quando não se conhece o valor de p, adota-se o limite de segurança padrão 50%; adota-se p = 0,50 = [(1,96n)2 . 0,50 . 0,50 / (0,05)2] n = 384 pacientes. 10- O encontro de associação entre exposição e efeito não significa que ela seja causal. Assim, para inferir causalidade em estudos observacionais, os critérios de análise metodológica são sequência cronológica (a variável de predição precede a variável de desfecho), força da associação, plausibilidade biológica (a associação faz sentido em termos biológicos e ss fatos novos se enquadram no conhecimento existente sobre a história natural da doença), associação observada em estudos diferentes com desenhos diferentes, força de associação aumenta quando a exposição à variável de predição aumenta (dose-resposta) e analogia (a associação encontrada entre o fator e a doença é análoga a uma outra relação previamente descrita). Pode-se fazer também controle estatístico para verificar se variáveis intervenientes são determinantes do desfecho (fatores confundidores) e se estão desigualmente distribuídos entre expostos e não-expostos.

15 de novembro de 2009

"Bufê delirante" (Bouffée Délirant)

Por Rafael de Sousa Andrade
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB / Monitor de Semiologia Médica Resumo
O "bufê delirante", ou psicose reativa breve, caracteriza-se pelo aparecimento abrupto de sintomas psicóticos sem a existência de sintomas pré-mórbidos e, habitualmente, seguindo-se à ocorrência de um evento estressante psicossocial e com evolução para remissão completa. O quadro é semiologicamente polimórfico, agudo e transitório, sobressaindo-se os sintomas psicóticos. Palavras-chave: Ilusões. Alucinações. Transtornos mentais. Define-se “bufê delirante” (ou "baforada delirante") como um quadro psicótico breve, polimórfico, agudo e transitório, com sintomas esquizofrênicos associado com turvação da consciência (confusão mental), excitação psicomotora e comportamento agitado seguido de amnésia anterógrada; se os sintomas esquizofrênicos persistirem por mais de um mês, o diagnóstico passa a ser de esquizofrenia (BALLONE, 2005). Os sinais e sintomas clínicos são similares àqueles vistos em outros distúrbios psicóticos, como na esquizofrenia e nos transtornos afetivos com sintomas psicóticos. O prognóstico é bom e a persistência de sintomas residuais não ocorre. Durante o surto observa-se incoerência e acentuado afrouxamento das associações, delírios, alucinações e comportamento catatônico ou desorganizado. Há componentes afetivos com mudanças bruscas de um afeto para outro, perplexidade e confusão. A descrição original da apresentação clínica contém cinco características cardinais: início abrupto, delírios estruturados com alucinações ocasionais, um certo grau de turvação da consciência associada com instabilidade emocional, ausência de sinais físicos e uma remissão rápida e completa. Registros de psiquiatras franceses mostraram que 40% dos pacientes diagnosticados com bufê delirante foram reclassificados a posteriori como esquizofrênicos (PULL; CHAILLET, 1994).
Ao contrário do que descreveu Paul Legrant - autor que introduziu a expressão 'bouffée délirant' em 1886 - sobre ausência de fator de estresse ambiental, a Organização Mundial de Saúde, através da Classificação Internacional de Doenças (CID), recomenda que esta categoria de psicose deve ser limitada ao pequeno grupo de afecções psicóticas atribuídas a uma experiência existencial recente (WHO, 1992). Assim esse quadro deve ser considerado como uma alteração psicótica em que os fatores ambientais tem maior influência etiológica. Os conceitos nosológicos de "paranóico" ou "reação paranóide aguda", primeiramente descritos por Magnan na década de 1880, e de «psicose psicogênica", descrita por Wimmer, em 1916, referem-se a este quadro. Aqueles termos ainda estão em uso nos seus países de origem, ou seja, a França e os países escandinavos. Ambos os termos referem-se aos mesmos episódios psicóticos de bom prognóstico, não relacionados com a esquizofrenia propriamente dita (PICHOT, 1986). Chabrol (2003) também faz menção ao conflito entre as classificações nosológicas francesa e internacional relacionado com o conceito francês de psicose alucinatória. No entanto, essas discrepâncias são agora amplamente reduzidas pela evolução das versões mais recentes das classificações internacionais. Esse autor afirma que o termo delírio descreve uma desordem psicótica não afetiva aguda e não esquizofrênica, que é muito similar ao transtorno psicótico breve esquizofreniforme do DSM-III-R e DSM-IV, sendo retomada na CID-10 sob o nome de transtorno psicótico agudo polimorfo. Priest e Laffont (1992) compararam sistema de diagnóstico utilizado na França e na Grã-Bretanha e concluiram que os critérios são muito semelhantes, exceto nesse caso, das "psicoses funcionais não-afetivas". Assim como ocorre em relação à maioria das etiologias dos transtornos psiquiátricos, a do “bufê delirante” não é totalmente conhecida. Múltiplos fatores (ambiental, social-econômico e biológico) servem para justificar as possíveis alterações psico-neurobiológicas do quadro (NATHAN; LANGENBUCHER, 1999). Referências SADOCK, B. J.; SADOCK, V. A. Kaplan e Sadock`s Comprehensive Textbook of Psychiatry. Lippincott Williams & Wilkins Publishers, 2000. WORLD HEALTH ORGANIZATION. The ICD-10 Classification of Mental and Behavioural Disorders. Clinical Descriptions and Diagnostic Guidelines. World Health Organization, Geneva, 1992. BALLONE, G. J. Esquizofrenias. In: PsiqWeb, Internet. Disponível em: http://www.psiqweb.med.br. Acesso em: 11 nov 2009. CHABROL, H. Chronic hallucinatory psychosis, bouffée délirante, and the classification of psychosis in French psychiatry. Curr Psychiatry Rep. 5(3):187-91, 2003. PICHOT, P. The concept of 'bouffée délirante' with special reference to the Scandinavian concept of reactive psychosis. Psychopathology. 19(1-2):35-43, 1986. PRIEST, R. G.; LAFFONT, I. The British and French systems of classification and psychiatric disorders. Ann Med Psychol (Paris). 150(4-5): 313-7, 1992. PULL, C. B.; CHAILLET, G: The nosological views of French-speaking psychiatry. In: Psychiatric Diagnosis: A. World Perspective, JE Mezzich, Y Honda, MC Kastrup, editors. Springer-Verlag, Berlin, 1994. NATHAN, P. E.; LANGENBUCHER, J. W. Psychopathology: Description and classification. Annu Rev Psychol 50: 79, 1999.

Imagem: Foto de "The Shining" ("O Iluminado", no Brasil), filme de terror psicológico lançado em 1980 e baseado no livro homônimo de Stephen King (dirigido por Stanley Kubrick e estrelado por Jack Nicholson, que aparece na foto acima). Foto: www.web-libre.org/dossiers/delire,1559.html

Determinantes sociais da saúde: O modelo de Dahlgren e Whitehead


Por Charles Saraiva Gadelha
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB / Monitor de Semiologia Médica


Resumo
O conceito de determinantes sociais de saúde (DSS) refere-se aos fatores relacionados com as condições de vida e de trabalho da população que influenciam seu estado de saúde. O modelo de Dahlgren e Whitehead descreve as relações entre os fatores sociais e a saúde coletiva e individual. Este modelo organiza os DSS em diferentes camadas que se relacionam, permitindo identificar pontos de intervenção.


Palavras-chave: Doença. Saúde. Epidemiologia. Meio ambiente e saúde pública. 

Os determinantes sociais de saúde (DSS) são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (CNDSS, 2006). Este conceito surgiu na década de 1970 com a preocupação de melhorar o sistema de saúde vigente, centrado em cuidados agudos, apesar de inúmeras evidencias consistentes já demonstrarem o enorme impacto na saúde das circunstâncias sociais e dos serviços de prevenção (WILDE, 2007).
Já dizia Virchow em 1848 que “se a doença é uma expressão da vida individual sob determinadas condições desfavoráveis, a epidemia deve ser indicativa de distúrbio, em maior escala da vida das massas” e ressaltava ainda que estas condições econômicas e sociais afetam o estado de saúde e que tais relações devem ser submetidas à pesquisa científica (VIRCHOW, 1848, apud BARATA, 1985). 
A maior dificuldade dos estudos sobre as relações entre determinantes sociais e saúde é estabelecer uma hierarquia de determinações entre os fatores mais gerais de natureza social, econômica, política e meios pelos quais esses fatores incidem sobre a situação de saúde de grupos e pessoas, já que esta relação não se resume a um processo de causa-efeito (BUSS; PELLEGRINNI, 2007). Um dos principais modelos que procuram esquematizar a trama de relações entre os diversos fatores sociais e a saúde coletiva e individual é o modelo de Dahlgren e Whitehead. Este modelo inclui os DSS dispostos em diferentes camadas, desde uma camada mais próxima dos determinantes individuais até uma camada distal, onde se situam os macrodeterminantes (DAHLGREN; WHITEHEAD, 2007). Apesar de bastante didático, este modelo não pretende explicar com detalhes as relações e mediações entre os diversos níveis (Op. cit). 
Segundo Dahlgren e Whitehead (2007), neste esquema de camadas, os indivíduos estão no centro, com suas características individuais de idade, sexo e fatores genéticos influenciando suas condições de saúde. Na primeira camada estão os fatores relacionados ao comportamento pessoal e modos de vida que podem promover ou prejudicar a saúde - por exemplo, a escolha por fumar ou não. Nesta camada, chamada de social, os indivíduos são influenciados por amizades e família, além de normas e cultura de sua comunidade, tendo seus hábitos fortemente condicionados por determinantes sociais - como informações, propaganda, pressão dos pares, possibilidades de acesso a alimentos saudáveis e espaços de lazer etc.

A próxima camada corresponde a das redes de apoio sociais e comunitárias, servindo de importante instrumento de coesão social e fundamental para a saúde da sociedade como um todo.
No nível seguinte, estão representados os fatores relacionados a condições de vida e de trabalho, disponibilidade de alimentos e acesso a serviços essenciais, como saúde e educação. Este nível chama a atenção para o fato de que as pessoas em desvantagem social correm um risco diferenciado e, segundo o princípio da equidade do Sistema Único de Saúde, merecem intervenções diferenciadas e uma maior vigilância em saúde.
Por último, a camada dos macrodeterminantes, relacionados às condições econômicas, culturais e ambientais da sociedade exercendo grande influência sobre as camadas subjacentes. 
 Desta forma, o modelo de Dahlgren e Whitehead permite identificar pontos para implementação de políticas públicas, no sentido de atenuar as desigualdades de DSS originados pela posição social dos indivíduos e grupos. 
Políticas de abrangência populacional que promovam mudanças de comportamento e acesso facilitado a serviços essenciais, fortalecimento de redes de apoio e da participação de indivíduos e comunidade em ações coletivas para a melhoria de suas condições de saúde e bem-estar, além da instituição de políticas macroeconômicas visando um desenvolvimento sustentável são medidas fundamentais na abordagem dos DSS.

Referências 
BARATA, R. C. B. A Historicidade do Conceito de Causa. In: Textos de Apoio: Epidemiologia I. PEC/ENSP/ABRASCO. Rio de Janeiro, 1985. 
BUSS, PM; PELLEGRINI FILHO, A. A Saúde e seus Determinantes Sociais. Physis: Rev. Saúde Coletiva, 17 (1):77-93, 2007. 
COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE (CNDSS). Carta aberta aos candidatos à Presidência da República, 2006. Disponível em: www.determinantes.fiocruz.br. Acesso em: 05 nov 2009. 
DAHLGREN, G; WHITEHEAD, M. Policies and strategies to promote social equity in health. Arbetsrapport/Institutet för Framtidsstudier, 2007. Disponível em: http://www.framtidsstudier.se/filebank/files/20080109$110739$fil$mZ8UVQv2wQFShMRF6cuT.pdf. Acesso em: 05 nov 2009. 
WILDE, J. The Social and Economic Determinants of Health For discussion at Health and Human Rights: Setting the Priorities. Institute of Public Health in Ireland, 2007. Disponível em: www.publichealth.ie. Acesso em: 05 nov 2009.

Fonte da imagem: http://www.nwci.ie/download/pdf/determinants_health_diagram.pdf.

"A Dama Branca"

Cartaz da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose divulgado no Rio de Janeiro na década de 1920 (SOARES, 1994).
Esta campanha de Profilaxia da Tuberculose no início do século passado faz parte da história da doença no Brasil. O especialista em história da cultura, Pedro Paulo Soares (SOARES, 1994), escreveu um belo artigo sobre a representação iconográfica da tuberculose, afirmando que aquela
"representa uma era de avanços, tanto na área do conhecimento científico sobre a doença quanto na compreensão do papel do Estado na luta contra o mal, essas imagens nos mostram um momento de transição entre o mórbido sensualismo predominante no passado e a visão social da tuberculose que prevalecerá por todo o século XX. Apesar do conteúdo didático implícito no cartaz que adota a linguagem dos quadrinhos, sugerindo uma nova postura de vida orientada por formas de conduta 'saudáveis', notamos que a influência romântica na descrição da doença situa-se no centro da composição, área estratégica, onde um grupo de mulheres simboliza a luta entre o mal, indicado por corpos que despencam em torpor, e sua prevenção, outro corpo feminino em postura ascensional, portador dos emblemas do conhecimento e da ação: o fogo e a espada." (SOARES, 1994, p. 128)
Referência
SOARES, P. P. A dama branca e suas faces: a representação iconográfica da tuberculose. Hist. cienc. saude-Manguinhos. 1 (1): 127-134, 1994.

13 de novembro de 2009

O Homúnculo de Penfield e a Semiologia

Por Daniel Espíndola Ronconi Estudante de Graduação em Medicina da UFPB / Aluno do Programa Institucional de Voluntários de Iniciação Científica (PIVIC/UFPB) Resumo
Desenvolvido na década de 1940, o homúnculo de Penfield revolucionou o raciocínio clínico da neurologia moderna. Através de um mapeamento do córtex cerebral, foi possível representar diversas regiões do corpo em sua superfície relacionando-as diretamente com suas funções, tornando, assim, a neurosemiologia clínica mais eficiente. Palavras-chave: Neurologia, diagnóstico, cérebro. Em meados dos anos 1940, o neurocirurgião canadense Wilder Penfield (1891-1976) estava diante de centenas de pacientes com epilepsia intratável clinicamente. Ao perceber que seus pacientes experimentavam uma aura antes das crises, pensou que se pudesse induzi-las, através de uma leve estimulação elétrica no córtex cerebral, encontraria, assim, o foco da crise epiléptica e sua remoção levaria à cura. Utilizando apenas anestesia local, os pacientes eram mantidos conscientes enquanto Penfield abria seus crânios, localiza os focos epileptogênicos e os removia. Ele aproveitava para estimular outras regiões do parênquima e solicitava que o paciente descrevesse o que estava sentindo. Penfield ficou surpreso com o resultado, pois além de alguns efeitos esperados (motores e sensoriais), os pacientes forneciam respostas cognitivas complexas, envolvendo vários sentidos, como visão e audição, que representavam memórias de fatos passados.
Dando continuidade a suas investigações, Penfield passou a identificar as relações de algumas áreas do córtex cerebral com as diversas regiões do corpo humano, concluindo que havia uma proporcionalidade do tamanho destas áreas corticais com as funções periféricas (como precisão do movimento muscular ou densidade de receptores na superfície do corpo). Com isso, foi possível desenvolver um mapa cerebral no qual diferentes regiões corporais eram representadas no córtex, porém de uma forma diferente (tamanho e disposição) de como eram encontradas no corpo, idealizando o famoso homúnculo (tanto sensorial quanto motor). O homúnculo aparecia, então, como homem deformado, com algumas regiões maiores (muito maiores!) e outras menores do que eram na realidade.
Sabbatini (1998) afirma sobre o homúnculo que
No homúnculo motor, a região correspondente à boca e à língua ocupava uma área muito grande do córtex motor, assim como a do polegar e dos dedos da mão (regiões de movimentos complexos e muito finos), ao passo que a região correspondente às nádegas, pernas etc., ocupavam uma área relativamente muito menor (por terem movimentos mais grosseiros). No homúnculo sensorial, os lábios e as bochechas e as pontas dos dedos eram as que apareciam com maiores áreas, uma vez que são as mais sensíveis do nosso corpo, por terem mais sensores por centímetro quadrado que qualquer outra área do corpo, e ocupando, portanto, uma área desproporcionalmente maior do córtex.
E qual a importância do homúnculo de Penfield para a investigação semiológica? Ora, se há uma correspondência de regiões do córtex motor e sensitivo com áreas do corpo, fica mais fácil diagnosticar a topografia de lesões/distúrbios cerebrais a partir da anamnese e do exame físico. Assim, é necessário conhecer a disposição do homúnculo no córtex para que, diante de um exame físico alterado, possa ser feita a correlação clínico-semiológica. Na figura 1 é possível ver a disposição do homúnculo, tanto no córtex motor, quanto no sensorial.

Figura 1- Disposição do Homúnculo de Penfield no córtex sensorial e no córtex motor. Diante de um paciente com déficit motor em membros inferiores, deve-se pensar em uma lesão na porção mais sagital paramediana; diante de uma paralisia facial central, pensa-se em lesão da região mais lateral do córtex. A mesma correlação pode ser feita para pacientes com déficits sensitivos. A importância de conhecer a disposição do homúnculo não reside apenas nesse ponto. Diante de um paciente com suspeita clínica de acidente vascular cerebral (déficit motor ou sensitivo súbito, sem qualquer oura causa aparente [NITRINI, 2003]), é imprescindível para que se torne possível diagnosticar qual o ramo arterial envolvido no processo. Observe-se a figura 2. Nesta, vê-se que cada artéria cerebral é responsável por um território cortical e que, se sobrepormos a esta imagem a do homúnculo, perceberemos que, de certa forma, cada artéria é responsável pela “irrigação” de uma parte do corpo.

Fig. 2. Irrigação arterial do cérebro dividida conforme o território vascularizado por cada uma das três principais artérias do cérebro (A. cerebral anterior; A. cerebral média e A. cerebral posterior). Fonte: Foto Search: www.fotosearch.com/LIF119/cbraiart/ Imagine-se o seguinte caso: uma paciente, sexo feminino, 65 anos, chega ao consultório com história de déficit motor súbito grau III em membro inferior direito há cinco dias e que o paciente percebeu quando acordou, pela manhã. Não havia, na história clínica, qualquer outro fato que pudesse explicar a sua queixa. Qual seria a principal hipótese diagnóstica? E qual seria o território vascular acometido? Déficit súbito, sem outro dado que possa explicá-lo, devemos pensar em etiologia vascular e, pela epidemiologia, em acidente vascular encefálico (AVE). Ao se olhar o homúnculo de Penfield vê-se que o membro inferior localiza-se na região sagital paramediana e que esta região faz parte do território vascular da artéria cerebral anterior. Assim, provavelmente trata-se de um AVE isquêmico que afetou a artéria cerebral anterior ou um de seus ramos do lado esquerdo, uma vez que o déficit é no membro inferior direito. Mais do que um desenho bizarro, o homúnculo desenvolvido por Penfield foi e continua a ser uma importante arma para o desenvolvimento do diagnóstico clínico em muitas enfermidades neurológicas. Em uma medicina cada vez mais baseada em exame complementares e pouco raciocínio, a exatidão do homúnculo é um dos muitos motivos que faz com que a clínica neurológica seja apaixonante. Referências GUYTON, A. C.; HALL, J. E. Tratado de Fisiologia Médica. São Paulo: Elsevier, 2006. NITRINI, R. ; BACHESCHI, L. A. A Neurologia que todo médico deve saber. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 2003. PENFIELD, W.; RASMUSSEN, T. The Cerebral Cortex of Man: A Clinical Study of Localization of Function. JAMA. 206(2): 380, 1968. PORTO, C. C. Semiologia Médica. 5a. Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005. SABATTINI, R.M.E. A história da estimulação elétrica cerebral. Revista Cérebro & Mente, 18, Jun/Ago, 1998.

Imagem inicial desta postagem: Wilder Penfield http://blog.m3.com/neurosurgeons/20070926/Homuncle_de_Penfield

12 de novembro de 2009

Percepção da Disparidade entre o Justo e o Legalizado

"Age apenas segundo uma máxima (um princípio) tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1988, p. 59).


Por Rilva Lopes de Sousa-Muñoz

Nossa relação com a realidade é mediada pela percepção. Mas parece que cada um tem uma percepção do que é certo? O que é certo é tão relativo assim?... Só sei que nossa percepção pode se tornar empobrecida, na medida em que escolhe parcialmente algumas coordenadas para demarcarem a representação, abandonando outras. Isso pode se dar na articulação entre interesses individuais e coletivos. Interesses individuas se sobrepõem. Esse aspecto deve estar na mira de nossa percepção sobre cidadania se não quisermos nos manter alheios ao que acontece. 

Nesta sociedade competitiva, e por isso, fragmentada, cada um buscando seus próprios interesses, nos faz ver que as pessoas parecem ter perdido o sentido do que é correto. Assim, nos deparamos frequentemente com situações que nos exigem julgamento ético do que é "justo" ou "moralmente correto". Nesse sentido, é muito fácil perdermos o senso de medida quando participamos de fatos que exigem a percepção de disparidades, como a que existe na percepção da disparidade entre o que é justo e o que é legalizado, entre o que é interesse individual e o que é do coletivo. E, sobretudo, entre o que é imparcial e o que é resultado de favorecimentos especiais.

Não se pode tocar nesse tema sem recorrer à Filosofia. Aristóteles destaca a igualdade e a proporcionalidade como os mais importantes princípios da justiça distributiva. O filósofo entende que a função do direito é distribuir, na desigualdade, na proporcionalidade. O justo é o proporcional, ou o meio termo entre os iguais e desiguais (ARISTÓTELES, 2001, p. 96). Ser justo é ser equitativo, então? Segundo algumas leis, não. O problema é que toda lei é de ordem geral, mas é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em situações particulares? Habermas (1986) coloca nesse mesmo nível de importância a preocupação com o respeito à igualdade de direitos entre as pessoas (ou cidadãos) enquanto membros de uma comunidade onde compartilham redes de relações intersubjetivas de reconhecimento mútuo. Mas as noções de justiça e solidariedade, especialmente quando associadas ao conceito de cidadania, no âmbito filosófico, referem-se à teoria moral. Moral no sentido filosófico. Vianna (2007) propõe que sempre que o equilíbrio entre legalidade e justiça for inadequado se poderá se falar na existência de um déficit de cidadania. O que é direito ou justo é uma ação adequada a todas as pessoas em uma mesma condição e com pretensões semelhantes.
Vamos ao exemplo prático que nos motiva esta postagem. Frequentemente, em reuniões departamentais de uma universidade, há submissão de pareceres sobre questões inteiramente polêmicas, altamente discutíveis, mas que são encaradas de forma natural por alguns pares, de modo a banalizar o fato em questão. Quando os membros de um departamento consentem em que algo se tenha como adequado e ajustado a alguém, mas não considerando a igualdade de oportunidades a outros, isso é um fato polêmico. Isso deveria gerar uma discussão mais séria e ponderada. Em decisões desse gênero, a imparcialidade racional deveria conduzir o rito do início ao fim, e não apenas os aspectos afetivos e emocionais. É próprio da justiça dar o de direito a cada um, pressupondo, porém, a diversidade entre um e outro; pois se alguém se proporciona a si mesmo, ou proporciona a um amigo ou colega próximo, um "direito", um direito que pode até ser legalizado, mas é eticamente discutível, isso precisa gerar discussão. Quando vemos as pessoas considerarem a parcialidade como algo natural, devemos nos espantar e não permanecer apáticos.
Mas... considerar apenas o que está na lei, em meio a apelos afetivos, sem avaliar igualdade de outros profissionais que poderiam também almejar ao mesmo direito - a isso se pode chamar propriamente de "justo"? A questão de potência na decisão do justo e o legalizado remete à obra de Jacques Derrida, "Força de Lei", em que ele afirma que para ser justa, uma decisão deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve confirmar seu valor. Algo pode ser provavelmente legalizado, conforme ao direito, “mas não poderemos dizer que é uma decisão justa". Não cabe falar da justiça nesse caso embora possa ser algo legal, previsto na lei (VIANNA, 2007). 
É por meio dos comportamentos e práticas determinados pelos códigos legais, mas que não consideram o modo como se deve definir o justo e o injusto, que podemos deixar de considerar os direitos de todos. 

Referências 
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UnB, 2001. 
DERRIDA, J. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. HABERMAS, J. Técnica e ciência como "ideologia". Lisboa: Edições 70, 1993. 
KANT. I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1988. 
VIANNA, L. V. O legal e o justo: A propósito do diálogo entre dois juízes e um cientísta político. Boletim CEDES: Centro de Estudos Direito e Sociedade, 2007. Disponível em: http://cedes.iuperj.br/banco%20artigos/Filosofia.pdf

11 de novembro de 2009

Contratura de Dupuytren

Por Charles Saraiva Gadelha Estudante de Graduação em Medicina da UFPB / Monitor de Semiologia Médica
A contratura de Dupuytren (ou moléstia de Dupuytren) é uma doença benigna, lentamente progressiva e fibroproliferativa da fáscia palmar e de seus prolongamentos digitais. Foi Felix Plater, médico suíço, quem descreveu pela primeira vez esta condição em 1614. Mas foi o Barão Guillaume Dupuytren, um célebre cirurgião francês, que apresentou o estudo anatômico em 1831 e estabeleceu a fáscia palmar como o local de origem, o que distingue esta afecção de outras causas de contratura dos dedos (1). A fisiopatologia básica da moléstia de Dupuytren é a proliferação de fibroblastos e depósito de colágeno, produzindo contraturas principalmente nos terceiro, quarto e quinto quirodáctilos (2). As causas dessa proliferação descontrolada da fáscia palmar a ponto de surgirem contraturas de flexão debilitantes permanecem desconhecidas. Há evidências que sugerem grande potencial para a geração de radicais livres induzida por isquemia, os quais poderiam estimular a proliferação de fribroblastos (1). Suspeita-se também do envolvimento de fatores de crescimento, incluindo fator de crescimento fibroblástico e fator de crescimento derivado de plaquetas (2). Esses fatores mostram expressão aumentada dentro da fáscia doente. Uma vez que nódulos se formam, o estágio de contração ativa ou involuntária começa. Esta fase é um estado de doença mais avançada, mas é um pouco menos biologicamente ativa do que a fase proliferativa. Cordões e bandas espessadas da fáscia começam a se desenvolver próximo aos nódulos e sulcos na pele costumam estar presentes, denotando aderência da pele na fáscia subjacente. Na doença avançada os nódulos tendem a regredir e as contraturas nas articulações metacarpofalangianas e interfalangianas proximal tornam-se cada vez mais severas. Há também atrofia dos músculos da mão e até mesmo do antebraço (3). Pode ocorrer associação com a formação de cordões fibrosos na fáscia plantar e na fáscia peniana (2). Acredita-se que exista um componente genético associado à contratura de Dupuytren, já que a incidência é maior se existem familiares afetados. Vários estudos sugerem um padrão de herança autossômica dominante com penetrância variada (4). Embora possa estar associada ao tabagismo, alcoolismo, infecção por HIV, doenças vasculares ou cardíacas que cursem com baixo débito, diabetes mellitus, hepatopatias e ao uso de anti-epilépticos (1). Por isso, é necessário obter uma história médica completa ao avaliar um paciente com esta enfermidade, atentando-se para condições potencialmente relacionadas a esta moléstia. Durante a anamnese, os pacientes normalmente referem como queixa principal diminuição da mobilidade dos dedos acometidos e, algumas vezes, dor local. Um exame físico completo antes de se concentrar na (s) mão (s) envolvida (s) deve ser realizado. Entretanto, devem ser pesquisados durante o exame da (s) extremidade (s) acometida (s) aspectos importantes, como: • Nódulos firmes que podem ser sensíveis à palpação; • Cordões próximos aos nódulos, geralmente indolores (figura 1); • Palidez quando extensão ativa dos dedos; • Sulcos na pele evidenciando aderência à fáscia; • Contrações metacarpofalangianas e interfalangianas proximais, medindo o grau de flexão e investigando compensação interfalangiana distal por hiperextensão;
• Bursite, tendinites ou tenossinovites.
Figura 1: Nódulos e cordões nas mãos [Fonte: MATTAR Jr. (2008)]
O diagnóstico diferencial é feito com uma variedade de entidades nosológicas, muitas vezes denominadas “pseudo-Dupuytren´s”, tais como: deformidade congênita, cicatriz pós-traumática, contratura por imobilização, contratura isquêmica de Volkman e tenossinovite palmar. Referências 1- BARROS F.; BARROS, A.; DE ALMEIDA, S. F. Enfermidade de Dupuytren: Avaliação de 100 casos. Rev Bras Ortop 32(3):177-183, 1997. 2- REVIS, D. R. Dupuytren Contracture. In: Medscape´s continually updated clinical reference. Disponível em: http://emedicine.medscape.com/article/329414-overview. Acesso em: 23 out 2009. 3- MATTAR Jr., R. Moléstia de Dupuytren. Einstein. 6 (1):S138-S42, 2008. 4- BURGE, P. Genetics of Dupuytren's disease. Hand Clin. 15(1): 63-71, 1999.

Fonte da figura de abertura desta postagem: http://drevancollins.com/blog/?tag=carpal-tunnel-syndrome

9 de novembro de 2009

Significância estatística versus poder estatístico

Por Gilson Mauro Fernandes Filho
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB / Monitor do Módulo Pesquisa Aplicada à Medicina (MCO2) / UFPB
Para expressar os resultados de uma investigação onde se pretende avaliar diferenças entre a estimativa de uma amostra e o valor possível do parâmetro na população, ou a diferença entre duas amostras, usam-se distintas expressões. Na estatística inferencial, em que o pesquisador toma decisões sobre uma população a partir do estudo de amostras desta, criaram-se parâmetros estatísticos para avaliar a sua validade. É nesse contexto que se inserem os conceitos de significância estatística e poder estatístico. Para realizar uma inferência estatística, é necessário que o pesquisador especifique o nível de erro estatístico aceitável. O mais comum é se especificar o erro Tipo I (alfa). Este representa a probabilidade de se rejeitar a hipótese nula quando esta é verdadeira; é a significância estatística do teste. Trata-se do caso do falso-positivo. Desta forma, o pesquisador especifica previamente a probabilidade de se relatar significância na análise, sendo que ela não existe em verdade (figura 1). Existe ainda outro tipo de erro, que está associado ao primeiro. É o erro Tipo II (ou beta). Este demonstra a probabilidade de não se rejeitar a hipótese nula quando, na realidade, esta é falsa (HAIR et al, 1998).
Figura 1: Decisão estatística e erro (quadro copiado de HAIR et al., 1998).
Há ainda outra probabilidade relacionada: o poder estatístico do teste de inferência, representado por 1 – beta. Trata-se da probabilidade de se rejeitar corretamente a hipótese nula quando esta deve ser rejeitada, ou seja, está relacionada com a capacidade do teste estatístico em detectar diferenças. Por exemplo, um determinado estudo pode ser suficientemente poderoso para encontrar uma diferença de 30%, mas não ser capaz de detectar uma diferença de 20% (DÓRIA-FILHO, 1999). O poder do teste é usado para planejar o tamanho da amostra e também é útil para interpretar resultados de análises estatísticas inferenciais em que a diferença encontrada não foi estatisticamente significativa. Nesse caso, é interessante calcular que poder tem o estudo realizado. Quanto maior a dispersão dos dados e menor o tamanho da amostra, menor será o poder do estudo (1-beta). Percebe-se que, em ambos os conceitos, significância e poder estatístico, leva-se em conta a significância no teste. Porém, a significância estatística mede quando essa significância é falsa; o poder estatístico mede quando essa significância é verdadeira. Dessa forma, é o poder estatístico que demonstra a chance de encontrar a significância quando ela realmente existe. Em outras palavras, o poder é a probabilidade de que se rejeite a hipótese nula quando esta deve ser rejeitada mesmo (evitando-se, assim, um erro tipo II). É geralmente aceito que o poder do teste deve ser de 80% ou mais, ou seja, uma probabilidade de 80% ou mais de se encontrar uma diferença estatisticamente significativa quando esta existe mesmo. Ainda assim, não se utiliza o poder estatístico como referência de controle do teste, pois o controle deve ser exercido pelo valor de alfa, o nível de significância. Isso porque, cometer um erro Tipo I numa análise é muito mais grave do que cometer um erro Tipo II. Quando se comete um erro Tipo I, se aceita uma hipótese falsa e a pesquisa é finalizada erroneamente. Quando se comete um erro Tipo II, se rejeita uma hipótese verdadeira, mas a pesquisa continua para buscar uma efetiva hipótese verdadeira.
Se a diferença é estatisticamente significante no nível preestabelecido de alfa (exemplo: 5%), não há necessidade de o pesquisados se preocupar com o erro Tipo II ou erro falso-negativo (JEKEL et al., 1999). Por isso a significância estatística é o parâmetro de controle do teste a ser definido em primeiro lugar. Nesse contexto, deve-se buscar uma equivalência entre as medidas, pois a significância é diretamente proporcional ao poder estatístico do teste. Ou seja, ao se diminuir a significância do teste, para se reduzir a probabilidade o erro Tipo I, diminui-se também o poder do teste, e este se torna cada vez menos acurado. Por isso a necessidade de se atingir um equilíbrio entre as medidas (RODARTE, 1993). Para interpretar os resultados de uma análise estatística com segurança é preciso garantir que o teste estatístico seja suficientemente poderoso para detectar reais diferenças. Em uma revisão de 71 artigos com resultados sem significância estatística, Freiman et al.(1978, apud PAES, 2008) concluíram que mais do que ausência de significância, havia incapacidade em detectar diferenças. Esta incapacidade é o baixo poder que está diretamente relacionado com o tamanho da amostra. Assim, é natural concluir que estudos com muitos pacientes tenham maior poder e estudos com poucos pacientes provavelmente tenham baixo poder estatístico. Na prática, é importante que se tenham testes com nível de significância próximos do nível de significância nominal (fixado previamente pelo pesquisador) e que o poder estatístico seja alto, mesmo em situações de amostras pequenas (BARROS; MAZUCHELLI, 2005).
Para se dizer formalmente que se aceita H0, deve-se, então, avaliar o poder do teste ou a probabilidade de ocorrência do erro Tipo II. Para avaliar o poder do teste é preciso verificar a probabilidade de ocorrer todos os erros em que a hipótese alternativa abrange. Como a hipótese nula sempre abrange os resultados mais simples, as vezes fica muito complicado analisar o poder e chegar a conclusões inferenciais, mas esta é uma tarefa que deveria ser mais realizada do que geralmente o é em pesquisa aplicada à Medicina. Referências BARROS, E. A. C.; MAZUCHELLI, J. Um estudo sobre o tamanho e poder dos testes t-Student e Wilcoxon. Acta Sci. Technol. 27 (1): 23-32, 2005 DÓRIA-FILHO, U. Introdução à Bioestatística: Para simples mortais. São Paulo: Elsevier, 1999 HAIR, J. F. et al. Análise Multivariada de Dados. Porto Alegre: Bookman Ed., 1998.
PAES, A. Por dentro da Estatística. Einstein: Educ Contin Saúde. 6(4 Pt 2): 153-4, 2008. JEKEL, J. F.; ELMORE, J. G.; KATZ, D. L. Epidemiologia, Bioestatística e Medicina Preventiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999 RODARTE, N. W Utilidad del valor de p y del intervalo de confiança. Rev Med IMSS, 31: 143-144, 1993.

7 de novembro de 2009

Ainda repercutindo a Semana C & T 2009

Mais membros do GESME participaram da Semana C & T 2009: Gilson, Mara, Jailson, Fernando, Camila e Edilton. Postagem anterior sobre o evento: http://semiologiamedica.blogspot.com/2009/10/curso-de-medicina-da-ufpb-na-semana-de.html

Apresentação do simulador emborrachado de parto pélvico para os alunos das escolas de nível médio de João Pessoa. Mara demonstra a ocorrência do período expulsivo do parto. O modelo pélvico anatômico é representado no simulador clássico para demostração do parto normal.

6 de novembro de 2009

Imagem semiológica: Lesões necróticas de pele

Paciente de 61 anos com lesões necróticas de pele
A paciente é portadora de hipertensão arterial, obesidade e diabetes melllitus. Há história de um quadro de linfadenopatia angioimunoblástica ocorrida há 15 anos. Ela não lembra dos detalhes deste diagnóstico, mas há dados colhidos com seu médico de que esta foi um quadro benigno, embora não haja registros disponíveis para análise. De acordo com o referido clínico, o quadro entrou em remissão completa após uso de prednisona.
Então, há um mês a paciente desenvolveu essas lesões em ambas as coxas (figura). As lesões são pretas, com vermelhidão ao redor e sensibilidade local. Nega prurido. Ela afirma que as lesões foram aumentando lentamente ao longo dos últimos dias, e algumas atingiram vários centímetros de diâmetro. Nega febre e calafrios. Suas glicemias de jejum têm variado entre 100 e 200 mg/dL. Nega tendências hemorrágicas ou qualquer trauma recente ou procedimentos na área das lesões. Não houve mudanças recentes em sua medicação. Nega tabagismo, consumo de álcool ou uso de drogas ilícitas.
Ao exame físico: T = 36,6 °C; pulso = 86 bpm, regular; PA = 128/81 mmHg; FR = 14 irpm. Exames da cabeça, pescoço, pulmões, coração e abdome normais. Pele das extremidades superiores e do tronco normais. Apresenta úlceras venosas nas áreas maleolares mediais, que não sofreram alterações em relação a um exame anterior. Há várias lesões negras e endurecidas em suas coxas, cada uma rodeada por um centímetro de eritema com um padrão ligeiramente reticular. Presença de edema em tornozelos (+/4+), mas sem edema em pernas e coxas. Não há vesículas ou pústulas no local. As maiores medidas da lesão são 4,4 × 2,6 cm (ver figura acima).
Que hipótese diagnóstica pode ser levantada?
Após elaboração de uma hipótese, publicaremos a fonte do caso clínico e o diagnóstico definitivo.

11/11/09: Diagnóstico -
Vasculite (crioglobulinemia)
Referência:
HARE, M. Necrotic Skin Lesions in a 61-Year-Old Woman. From eMedicine Case Presentations CME. Disponível em: http://cme.medscape.com/viewarticle/702987. Acesso em 11 nov 2009.
As bordas das lesões foram biopsiadas. A anatomia patológica revelou inflamação aguda e crônica da derme e gordura subcutânea. Nenhuma alteração citopática viral foi encontrada. Microtrombos de pequenos vasos estavam limitados à base da úlcera, o que sugere uma reação trombótica secundária. Não foram identificadas alterações específicas de vasculite ou malignidade.
Dada a história da paciente de transtorno imunoproliferativo e a apresentação atípica de suas lesões, o diagnóstico presuntivo foi de vasculite. Outros exames laboratoriais foiram realizados. Lúpus anticoagulante não foi detectado e anticardiolipina também foi negativo. Os anticorpos antinucleares (FAN) e anticorpos contra antígenos citoplasmáticos de neutrófilos (ANCA) não foram detectados também. Todos os marcadores de hepatite foram negativos, inclusive para hepatite C. O teste de fator reumatóide foi negativo. O teste Crioglobulina O foi positivo (principalmente IgG). Este foi confirmado por um teste feito vários meses depois.
Crioglobulinas são misturas de imunoglobulinas que precipitam de forma reversível em baixas temperaturas. Crioglobulinemia é definida como a presença de crioglobulinas no soro. Isso pode levar a uma síndrome de inflamação sistêmica causada por imunocomplexos. O mecanismo de precipitação ainda é mal compreendido. A solubilidade de crioglobulinas está parcialmente relacionada com a estrutura de imunoglobulina de cadeias pesadas e leves. Alteração na conformação da proteína resultante das mudanças de temperatura podem causar diminuição da solubilidade e consequente vasculite.

5 de novembro de 2009

Uma Breve Semiologia da Mentira


Por Rilva Lopes de Sousa-Muñoz

Por ser uma questão de natureza ética e moral, a mentira é pouco discutida no contexto da Medicina, talvez por constituir um tema óbvio (ou, pelo contrário, altamente complexo). Contudo, a mentira pode ser sintomática de uma doença mental.
Começo este texto por uma breve consideração da mentira como um fato cultural, mencionando a permissividade que existe na sociedade como um todo em relação à mentira, à corrupção e à falta de ética. 
Há boas razões para acreditar que o jogo da mentira é inteiramente refratário a qualquer critério de plausibilidade (GUERREIRO, 1989). Por acaso, pode-se dizer "Vou mentir para você agora" e fazer justamente isto logo em seguida?
Segundo Outeiral (2004), a mentira ocupa um lugar importante na cultura contemporânea da sociedade pós-moderna. Considera-se “natural” que todas as pessoas, em algum momento de suas vidas, tenham que dizer alguma mentira. Há até um livro intitulado “Da impossibilidade de viver sem mentir” (KRÜGER, 1998).
Em um filme americano recente, intitulado O Mentiroso”, tentou-se fazer uma comédia sobre a onipresença da mentira na profissão jurídica. Os cineastas tentaram criar o riso a partir de um enredo que não parece nada engraçado sobre como a mentira e o engano  se tornaram generalizados entre os advogados. Sem mentir, o personagem principal não poderia funcionar no sistema judicial. O personagem cômico do filme salvou sua vida e sua integridade moral, descobrindo a importância de ser verdadeiro. Mas, para isso, ele teve que procurar outro tipo de trabalho. 
O ato de mentir, contudo, é mais ou menos tolerado conforme os valores de cada povo e cada época. E até numa mesma sociedade podem coexistir graus diferentes de aceitação (ou repúdio) da mentira, de acordo com as expectativas que cada grupo social e das características de cada momento histórico. "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Essa frase foi usada pelo ministro da propaganda nazista em um momento histórico em que a “verdade” foi construída sobre uma grande mentira.
A verdade é que a humanidade mente muito. Jellison (1998, apud O’SEANERY, 2007) estudou o hábito de mentir entre americanos adultos, verificando que estes escutam, leem ou dizem cerca de duzentas mentiras por dia, ou seja, ocorre uma mentira a cada mais ou menos cinco minutos.
A questão da mentira é um tema importante da filosofia moral. Schopenhauer admite a mentira usada no limite da autoconservação, num ato de "legítima defesa" (SCHOPENHAUER, 1995). Mas para Kant a mentira é má em si mesma, na sua origem, sejam quais forem as motivações e consequências. Segundo este filósofo, é preciso sempre dizer a verdade, quaisquer que sejam os seus efeitos e o contexto histórico. Por sua vez, Nietzsche (1987) é incisivo a respeito da mentira como regra e não exceção:
No homem, a arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar por trás das costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater as asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade” (NIETZSCHE, 1987, p. 54).
Sobre a banalização da mentira, Caniato (2005) afirma que "na contemporaneidade a mentira constitui um dos principais atributos das relações sociais, instituindo-se como valor eticamente perverso e destrutivo em todos os níveis da vida dos homens. Haveria uma banalização da mentira como uma das perversões da sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica" (CANIATO, 2005).
Ainda segundo Caniato (2005), tudo passa a ser aceito sem julgamento nem hierarquia de valor, transformando-se em norma social. Quando são internalizadas pela consciência moral de cada um e sancionadas pelas mentes individuais do grupo circundante, passam a ser percebidas e identificadas como originárias do mundo interno dos sujeitos, portanto "naturalizadas".
Contudo, a mentira existe como produto da comunicação humana. Mentir é um comportamento verbal aprendido (FIGUEIREDO, 2008). O ato de mentir está relacionado à intenção de enganar, ludibriar, e não de apenas deturpar a verdade. Santo Agostinho (apud DERRIDA, 1996) assinalava que não há mentira sem intenção, desejo ou vontade de enganar (fallendi cupiditas, voluntas fallendi).
A mentira se dá quando se oferece um conhecimento falso a um indivíduo que provavelmente fará uso de nossa informação para direcionar sua ação, ou seja, a mentira tende influir sobre o conhecimento alheio não somente com intenção de fornecer uma informação errada, mas também, de forma a determinar a vontade e a ação do indivíduo, isto é, há a intenção de induzir a vontade manifesta em outro a agir segundo os fins de meu interesse (FIGUEIREDO, 2009).
A mentira como evento do desenvolvimento humano foi estudada por Jean Piaget. Ele mostrou que a compreensão das regras necessárias ao convívio em sociedade consolida-se na mente infantil por volta dos sete anos (RIBAS JÚNIOR, 1993). A mentira funcionaria como uma brincadeira até essa fase desenvolvimental, como um teste da relação da criança com o universo que a cerca. É só a partir dos sete anos, portanto, que as mentiras infantis devem ser objeto da atenção de pais e professores.
De acordo com Ballone (2006), a maioria das pessoas pode ser classificada entre os "mentirosos fisiológicos", e as mais fisiológicas das mentiras são os falsos elogios e as denominadas popularmente "desculpas esfarrapadas"...
Mas a mentira também pode ser sintoma de transtornos mentais. Como lembra Outeiral (2004), a mentira é uma das principais manifestações analisadas pelos psicoterapeutas: os assuntos sobre os quais a pessoa mente forneceriam ótimas pistas sobre suas áreas mais problemáticas, aquilo que ela não enfrenta ou quer esconder, até de si mesma.
Em contraste com outras formas de mentiras, a mentira patológica parece ser não planejada. Questiona-se se este é sempre um ato consciente ou se o mentiroso patológico teria controle sobre suas mentiras ou não. O hábito de mentir fantasticamente pode refletir um transtorno da personalidade que alguns autores chamam de “pseudologia fantástica”, que seria caracterizado por uma compulsão a fantasiar uma vida fictícia para causar mobilização e perplexidade em outras pessoas (BALLONE, 2006).
A mentira como parte de transtornos mentais pode correr nos problemas do controle dos impulsos, da mesma forma que ocorre no jogo patológico, na cleptomania, na bulimia e na dependência química. A mentira patológica também pode ocorrer em indivíduos com transtorno de personalidade anti-social ou personalidade psicopática.
A mitomania é uma condição extrema na qual a pessoa vive frequentemente envolvida na mentira. O Dicionário de Psicanálise estabelece a seguinte definição de mitomania: "tendência, mais acentuada nos estados psicopatológicos, para criar e relatar extraordinários eventos imaginados como acontecimentos reais da vida consciente" (CABRAL, 1971).
A mentira como parte dos transtornos factícios pode ser exemplificada pela "síndrome de Munchausen". Esta é um transtorno factício no qual os pacientes simulam, exageram ou provocam uma doença. Esses transtornos são denominados de "factícios" por derivação da palavra latina que significa “artificial”, sendo transtornos psiquiátricos associados a sérias alterações emocionais. Esta entidade é caracterizada pela busca consciente e voluntária do indivíduo de permanecer a qualquer custo no lugar de doente, sem outra intenção de ganho, seja ele material ou afetivo.
Ao contrário daqueles indivíduos que simulam uma doença a fim de obter vantagens através deste comportamento, os pacientes com transtorno factício possuem o objetivo de assumir o papel de "paciente" ou de "vítima". Na literatura científica há relatos de paraplegia factícia (ARTEAGA-RODRIGUEZ, 1999), surdo-cegueira factícia (MINER; FELDMAN, 1998) e até casos de câncer de mama factício, resultando em uma mastectomia desnecessária (FELDMAN, 2001) entre outros problemas simulados.
A tendência patológica para mentir raramente fica restrita a um único evento. Além disso, a mentira patológica difere da mentira comum principalmente porque na mentira comum há um objetivo, um propósito de enganar para obter alguma vantagem, enquanto na mentira patológica não há essa finalidade. É apenas a expressão do funcionamento mental defeituoso. O mentiroso patológico é pouco reflexivo e, ao contrário do mentiroso normal, mente sem julgar o que diz, não se dando conta de que muitas vezes o que está dizendo chega a ser bizarro. Pacientes com esse tipo de transtorno muitas vezes apresentam outros problemas mentais e história de dificuldades de manter relacionamentos saudáveis. São frequentes ainda comorbidades com depressão ou abuso de substâncias psicoativas (CAMARGO; BRANDT, 2008).
Atualmente, acredita-se que há um substrato biológico para os mentirosos patológicos. O mapeamento funcional do cérebro por ressonância eletromagnética (functional magnetic resonance imaging) pode identificar áreas cerebrais ativadas nos enunciados verdadeiros e falsos, demonstrando, então, uma "evidência neurológica" da mentira.
Pesquisas apontam que o córtex pré-frontal demanda maior fluxo sanguíneo para gerar histórias inverídicas. Ao mesmo tempo, as áreas do hemisfério direito, ligadas às emoções, também são mais estimuladas no momento da mentira. Pesquisas realizadas recentemente constataram ativação bilateral no córtex pré-frontal, com variações de repartição entre as massas cinzenta e branca do cérebro, quando relacionadas a mentirosos patológicos, anti-sociais e indivíduos normais, concluindo-se que os mentirosos patológicos teriam 25,7% mais de substância branca no córtex pré-frontal que os anti-sociais e 22% a mais que os indivíduos considerados normais (CAVALCANI et al., 2006).
Sendo assim, a mentira existe ao longo de toda a escala patológica. Será que a saúde mental só é compatível com a verdade? O ato de mentir ou fingir pode ser de alguma forma justificável? Ou será que a mentira é um mal que escolhemos em plena posse da nossa saúde mental?

Referências
ARTEAGA-RODRIGUEZ, C. et al. Síndrome de Munchausen e pseudoparaplegia: Relato de caso. Arq. neuropsiquiatr 57(3B): 881-5, 1999.
BALLONE, G. J. Sobre a Mentira. PsiqWeb 2006. Disponível em: www.psiqweb.med.br. Acesso em: 03 nov 2009.
CABRAL, C. Dicionário de Psicologia e Psicanálise. São Paulo: Expressão e Cultura, 1971.
CAMARGO, A. L. L.; BRANDT, R. A. Transtornos factícios: Desafio ético. Einstein: Educ Contin Saúde. 6 (4 Pt 2): 188-9, 2008
CANIATO, A. A banalização da mentira como uma das perversões da sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica: o esfacelamento do processo de individuação na adolescência. In: Proceedings of the 1th Simpósio Internacional do Adolescente, 2005, São Paulo (SP), 2005. CAVALCANTI, C. E. B. et al. Correlações neurais na substância branca pré-frontal em mentirosos patológicos: "a verdade por trás da mentira" - síndrome de Pinóquio. J. bras. neurocir 17(3):121-125, 2006.
DERRIDA, J. História da mentira: prolegômenos. Estud. av. 10 (27): 7-39, 1996.
FELDMAN, M. D. Prophylactic bilateral mastectomy resulting from factitious disorder. Psychosomatics. 42:519-521, 2001.
FIGUEIREDO, N. M. Sobre um suposto direito de mentir: um paralelo entre Kant, Schopenhauer e Constant, e alguns conceitos schopenhauerianos Revista Urutágua: Revista acadêmica multidisciplinar. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br//007/07figueiredo.htm. Acesso em: 04 nov 2009.
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Imagem: "Pinocchio", ilustração de Enrico Mazzanti (1852-1910).