28 de junho de 2011

Publicar ou Perecer? Eis a Questão...

Por Priscilla Duarte Ferreira
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB

Resumo
A publicação é a via final e necessária de um trabalho científico, e confere tradição, possibilidade de captar recursos aos pesquisadores e instituições acadêmicas, além de revelar talentos na área científica. A publicação científica assume, nos tempos atuais, um papel pragmático, fornecendo conhecimento que subsidie novas tecnologias e aplicações práticas, gerando efeitos concretos em um determinado campo de ação humana. Contudo, o aforisma "publicar ou perecer", corrente em discussões no ambiente científico, diz respeito à necessidade e exigência acadêmica de publicar trabalhos desenvolvidos para que os investimentos e conhecimentos adquiridos na pesquisa não sejam desperdiçados. Tornou-se uma meta primordial nessa área a publicação de artigos científicos, que também são critérios empregados para avaliação da produção docente no ensino superior.

Palavras-Chave: Publicação, Artigo, Informação.

O aforisma original em inglês "publish or perish", traduzido como "publique ou pereça", diz respeito a uma das "palavras de ordem" em vigor no ambiente científico. Partindo-se do pressuposto de que um estudo com enfoque de um problema relevante para a sociedade deve levar, por meio de grupos e representantes, à sua utilização para a resolução de seus problemas e à agregação da contribuição ao corpo de conhecimentos existente [1].

A publicação científica encerra uma etapa de pesquisa o registro científico detalhado de todas as hipóteses, os experimentos, arquivamento dos dados e análises, e conclusões. Ela faz parte do acervo de inúmeras bibliotecas e centros científicos de todo o mundo, sendo facilmente disponível para a comunidade, podendo ser citado pelos seus pares em outros trabalhos posteriores.

Essa pode ser vista como forma de fornecer à comunidade técnico-científica o conhecimento de novas descobertas, o desenvolvimentos de novos materiais, técnicas e métodos de análises nas diversas áreas das ciências [2]. Uma de suas utilidades é também aumentar o prestígio dos autores, visto que pesquisador com numerosas publicações tem reconhecimento da comunidade científica, alcança melhores colocações e divulga o nome da instituição à qual está vinculado, obtendo também maiores recursos para esta.

Na sociedade atual, caracterizada pelo desenvolvimento de novas tecnologias, conhecimentos e informações, tem se formado uma cadeia que começa no sistema produtivo, onde são definidas as demandas, passando pelo financiamento da pesquisa e o desenvolvimento de produtos e processos, retornando ao primeiro sistema, na forma de inovações que possibilitam o aumento da competitividade dos países no mundo globalizado [2]. Países que não conseguem encadear o processo produtivo com a inovação tecnológica e produção de conhecimento, participam de um ciclo vicioso no qual a baixa produtividade econômica impede a realização de investimentos em educação e pesquisas cientificas e tecnológicas.

Publicada numa revista especializada, os resultados de pesquisas refletem a submissão do trabalho do pesquisador à comunidade científica, isto é, à revisão pelos seus pares, que terão a função de avaliar a publicação. Sendo assim, um trabalho publicado passou por um processo de revisão sério, por um crivo mínimo de excelência, segundo os critérios daquela revista em particular. Como corolário, todo trabalho que não foi publicado, pode ser considerado sob suspeita, ou na verdade, inacabado.

É importante reconhecer que os órgãos patrocinadores e gestores da pesquisa científica no Brasil, como o CNPq e a CAPES, têm investido fortemente em programas destinados à sua melhoria. Isto poderia favorecer uma maior visibilidade da ciência produzida no Brasil [4].  Porém, na academia brasileira, segundo Nicolelis - em entrevista publicada no Jornal "Estadão" e amplamente difundida na mídia eletrônica -, as recompensas dependem do que ele chama de "índice gravitacional de publicação": quanto mais volumoso o currículo, melhor. Ou seja, o cientista precisa "colecionar" o maior número de publicações, sem importar tanto seu conteúdo e qualidade.

Por outro lado, a chamada "produção científica" começa a se tornar rotineira gerando verdadeira explosão da informação. Um clichê sempre presente nas discussões sobre comunicação científica é "publicar ou perecer". Alguém já o corrigiu para "publicar (qualquer coisa) ou perecer" [3].

Há uma busca quase obsessiva por currículos nos quais o número de trabalhos publicados supera o que seria razoável durante a vida útil de um ser humano. Isso reflete a adoção de uma atitude em que os achados das investigações são apresentados de forma desnecessariamente fragmentada e, às vezes, prematura. Nesse sentido, a expressão inglesa salami publishing refere-se ao fato de que os autores fatiam suas pesquisas em muitas e magras partes, de modo que a cada uma delas corresponda um trabalho a ser publicado [3].

A ênfase em indicadores quantitativos, no que concerne à avaliação de desempenho, pode ser responsável pela publicação de trabalhos em forma duplicada, pelo regurgitamento de argumentos e citações, pelo engessamento das idéias em "referenciais" teóricos, de forma sectária e dogmática, pela feudalização dos grupos de pesquisa, cujos coordenadores/orientadores, muitas vezes, arrogam-se o papel de suseranos a reivindicar obediência ao costume (real ou mítico) do jus primae noctis. Assim, muitas vezes ocupam a primazia da autoria em trabalhos em que sua participação foi meramente circunstancial [3].

Vivemos um momento crucial em que talvez se esteja forjando um novo modelo, uma nova forma de socialização das informações. Mas a construção desse modelo passará inevitavelmente pela definição de um novo consenso sobre quando publicar e como publicar. Pilhas de palavras, gráficos e equações são produzidas apenas para aumentar a quantidade das coisas que irão, rapidamente, para o lixo da história, inflando por algum tempo o ego e a reputação local de alguns.

Nota-se, portanto, que essa alta produção torna-se irrelevante se não for acompanhada de sua divulgação com fidedignidade e qualidade, o que exige, como condição necessária, que os veículos de divulgação tenham características técnico-científicas mínimas, a fim de oferecerem as informações necessárias para uso no processo de desenvolvimento de qualquer país [4].

Por fim, é preciso alimentar o hábito institucional de discutir ciência, criando novos meios eletrônicos para divulgar os resultados da pesquisa, os quais muitas vezes ficam nas “gavetas”, perecendo. O movimento em prol do acesso livre à informação é extremamente bem-vindo e merece o apoio de todos os profissionais da informação e da comunidade que realiza pesquisas em todas as áreas.

Referências
[1] ANDRADE, I. B.; LIMA, M. C. . Manual de Elaboração de Apresentação de Trabalhos Científicos. Fundação Benedito Pereira Nunes. Faculdade de Medicina de Campos. 2007. Disponível em: http://www.biblioteca.fmc.br/Monografia/artigo_cientifico.pdf. Acesso em: 28 jun. 2011.
[2] PEREIRA JÚNIOR, A. A Publicação Científica na Atualidade. Sociedade Brasileira de Angiologia Vascular. J Vasc Bras, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jvb/v6n4/v6n4a02.pdf. Acesso em: 28 jun. 2010.
[3] LEMOS, A. A. B. Publicar e perecer. Ci. Inf., Brasília, v. 34, n. 2, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-19652005000200001&lng=en&nrm=iso.  Acesso em: 28 jun. 2011.
[4] CABRAL-FILHO, J. E. Revistas científicas brasileiras: publicar e perecer? Rev. Bras. Saude Mater. Infant., Recife, v. 8, n. 4, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292008000400001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 28 jun. 2011.

23 de junho de 2011

Serendipidade

Por Priscilla Duarte Ferreira
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB

“As sementes da descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas só lançam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las.”
(Joseph Henry)

Resumo
Serendipidade é um neologismo que se refere às descobertas venturosas que ocorrem por acaso. Embora o avanço científico seja considerado resultante de investigação rigorosa, não se pode excluir o papel da sorte nas descobertas e invenções. Acidentes de pesquisa às vezes podem levar a grandes avanços científicos, como a descoberta da penicilina, da insulina, da heparina, dos raios-X e do oxigênio.

Palavras-chave: Observação. Acaso. Pesquisador.

A palavra serendipidade foi criada em 1754 pelo escritor e político Sir Horace Walpole, que a usou em uma carta na qual contava uma descoberta acidental de uma valiosa pintura antiga. A palavra serendipity deve ser traduzida por serendipidade. Etimologicamente, a terminação -ty, em inglês, originou-se do latim -tatis e do inglês médio -tie que evoluíram para -dade na tradução em português: gravity (gravidade), normality (normalidade), reality (realidade). Serendipidade também entrou no vocabulário para designar acasos felizes que levam a descobertas inesperadas, sobretudo no mundo da ciência (1).

Muitas das descobertas científicas e médicas aconteceram sem que se tivesse ideia do que estava sendo descoberto. Mais de 20 dentre as maiores descobertas decorreram de “acasos felizes”, ou seja, de serendipidade. Esta, atualmente, é considerada uma forma especial de criatividade, ou uma das muitas técnicas de desenvolvimento do potencial criativo de uma pessoa adulta, que alia perseverança, inteligência e senso de observação. Todavia, o acaso e o caos interferem a todo o instante e podem modificar as condições experimentais para melhor ou para pior, já que o achado fim não se buscava diretamente.

São qualidades do pesquisador serendíptico: curiosidade, paciência, empenho, organização, teimosia, isto é, capacidade de insight ("estalo") no lugar certo, na hora certa, além de muita transpiração e inspiração. É importante, porém, buscar e fazer a releitura do papel dos pesquisadores que se empenharam anteriormente sobre o mesmo assunto e tinham objetivos análogos (2).

A mais difundida descoberta médica, a penicilina, é o mais conhecido exemplo de serendiptia. Não fora a descoberta acidental do vidro pela atividade vidreira egípcia na cozedura da louça de barro (6.000 anos a.C.) e se as lentes de rudimentar microscópio de van Leeuwenhoek (1675) não descobrissem existência de micróbios na gota d'água proveniente de chuva coletada havia dias, Fleming (1928) não teria conhecimento bacteriológico, nem interesse em observar o crescimento de Staphylococcus aureus em meio de cultura; sobretudo, quando o mofo do gênero Penicillium que, por acaso, era proveniente do andar inferior do hospital onde se estudava micologia, "contaminara" e impedira o crescimento dos estafilococos (2).

A heparina foi descoberta por um estudante de medicina, que procurava, não um anticoagulante natural, mas caracterizar um procoagulante natural. O anticoagulante oral tem sua origem nas pesquisas na área animal, feita em bovino que morreu de hemorragia espontânea após ingestão de trevo doce deteriorado. Outras descobertas consideradas como frutos de serendipidade foram a da insulina, dos raios-X e do oxigênio.

Seria fácil classificar os cientistas que exploraram a serendipidade como apenas sortudos, mas isso seria injusto. Todos esses cientistas e inventores conseguiram aproveitar suas observações casuais somente depois de terem acumulado conhecimento suficiente para colocá-las num contexto. Como disse Louis Pasteur, que se beneficiou com a serendipidade: “O acaso favorece a mente preparada”. Walpole também destacou isso em sua carta original, ao descrever serendipismo como o resultado de “acidentes e sagacidade” (3).

Embora acidentes na pesquisa sejam lamentáveis, há aqueles que acontecem e, às vezes, podem levar a avanços espetaculares, como tratamentos heroicos e até Prêmios Nobel. Manter a mente aberta é um traço comum àqueles que ensejam contar com a sorte grande, como afirmava o físico americano Henry (1842): "As sementes da descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas apenas lançam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las” (2). Quando um fenômeno, um evento, uma observação são detectados por mentes preparadas, sendo adequadamente interpretadas, podem gerar descobertas, inventos, teorias e conhecimento para que o homem se adeque cada vez mais ao seu mundo. Como afirma Consolaro (4), “Quantas maçãs e outros frutos não caíram sobre a cabeça de pessoas ou de animais antes de Newton formular sua teoria sobre a lei da gravidade?!”

Devido à impaciência por resolver problemas práticos e imediatos, está se tornando cada vez mais difícil para os pesquisadores, desviarem livremente suas atenções e exercitarem o espírito de serendípite (5).

Uma mente preparada origina serendipidade, porque esta depende de tempo para pensar, refletir, interpretar e desdobrar dados, observações e resultados. Muitos acreditam que a "sorte" favorece algumas pessoas colocando os "acasos" em suas descobertas, mas a "sorte" e o "acaso" ocorrem na vida de todos, embora apenas alguns poucos os detectam e aproveitam, pois suas mentes estão preparadas para interpretar processos e inventos essenciais para a vida. A serendipidade tem sido importante na evolução da ciência e da humanidade.

Referências
1- SAID, A. M. Gramática histórica de língua portuguesa, 3.ed. São Paulo, Melhoramentos, 1964.
2- VALE, N. B.; DELFINO, J. A serendipidade na medicina e na anestesiologia. Rev. Bras. Anestesiol. 55 (2): 224-249, 2005.
3- SINGH, S. Big Bang: Tudo sobre a mais importante descoberta científica de todos os tempos e porque esse conhecimento é indispensável; Rio de Janeiro: Record, 2006.
4- CONSOLARO, A. Adaptação ao mundo, avalanche de informações e a serendipidade na Odontologia. Rev. Dent. Press Ortodon. Ortop. Facial 13 (3): 23-27 , 2008.
5- LACAZ-RUIZ, R. Microbiologia Zootécnica. São Paulo: Editora Roca, 1992.

Imagem: "Probabilidade", pintura em óleo sobre tela de Héctor Molina (2009). Publicação autorizada.

22 de junho de 2011

O Fenômeno das Ligas Acadêmicas de Estudantes de Medicina


Por Pablo Alves Auad Moreira
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB

Resumo
As ligas acadêmicas (LA) são entidades formadas por alunos da graduação sob a supervisão de professores da área médica e têm como um de seus principais objetivos o aprofundamento em determinada temática de Medicina. Assiste-se a um fenômeno de expansão exagerada das LA. Tais entidades, se bem conduzidas, podem trazer grandes benefícios à formação médica; entretanto, a multiplicação de ligas acadêmicas estudantis sem o devido critério pode acarretar consequências negativas para os discentes.

Palavras-chave: Ligas acadêmicas. Educação médica. Atividades extracurriculares.

As Ligas Acadêmicas (LA) são entidades formadas por grupos de alunos de diferentes anos da graduação, que decidem se aprofundar em determinado tema, sob a supervisão de profissionais e professores vinculados a Instituição de Ensino Superior ou Hospitais de Ensino. As LA participam de forma efetiva na educação médica, promovendo conhecimento e atuação em áreas específicas e permitindo aproximação do estudante com as especialidades. Elas entram, juntamente com outras atividades extracurriculares, no chamado currículo paralelo do estudante de medicina.

A primeira LA brasileira foi criada em 1920, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e constituiu-se na "Liga de Combate à Sífilis". No Brasil, a expansão das LA foi dada inicialmente num momento de grande tensão político-social, correspondente aos anos da ditadura militar. Nesse contexto, associações estudantis passaram a questionar a essência do ensino universitário e o direcionamento e a aplicabilidade dos avanços técnico-científicos.

As escolas médicas brasileiras estão assistindo a um fenômeno exagerado de criação de novas ligas acadêmicas. Aumento este que se refletiu na criação, em setembro de 2006, da Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas de Medicina (ligada à Associação Brasileira de Educação Médica, 2007) durante o 8º Congresso Brasileiro de Clínica Médica, sediado em Gramado/RS, o que representou um marco na história da medicina brasileira, contando com o apoio de várias entidades médicas regionais e nacionais.

A proliferação das ligas, interessantemente, coincide com os períodos de reformas curriculares, o que pode sugerir uma busca dos estudantes por complementação de conteúdos num contexto de currículos que talvez não lhes transmitam segurança. Corroboram esta hipótese os dados de Tavares et al. (2004), que apontam como principal motivação para atividades extracurriculares a aquisição de maior experiência clínica e um currículo melhor.

As ligas têm constituído, ainda que informalmente, importante cenário de inserção do estudante em serviços de atenção à saúde e têm sido fonte de motivação para os estudantes. Por possibilitar uma maior aproximação com a prática médica, estudos observam que há uma maior participação de estudantes dos quatro primeiros anos da graduação. Segundo o estudo de Peres e Andrade (2007), a participação em LA foi a atividade mais frequentemente relatada pelos estudantes do primeiro ao terceiro ano do curso de medicina, e "aproximar-se da prática médica" foi o principal motivo apontado nesse quesito.

As LA proporcionam a introdução dos estudantes dentro de um tema de interesse, em um ambiente construído e conduzido por eles próprios, sob orientação, tornando possível uma grande aquisição de aprendizado e experiência.

Idealmente, espera-se que as LA constituam-se de um ambiente onde o aluno possa atuar junto à comunidade como agente de promoção de saúde e transformação social, ampliando o objeto da prática médica, reconhecendo as pessoas como atores do processo saúde-doença, o qual envolve aspectos psicossociais, culturais e ambientais, e não apenas biológicos.

As LA, então, podem propiciar, além do desenvolvimento de senso crítico e raciocínio científico, uma prática mais ampla do exercício da cidadania, com o olhar voltado para as necessidades sociais e a integralidade da assistência à saúde.

A participação dos alunos em LA ocorre em âmbitos de ações em saúde, ensino, pesquisa e extensão; aspectos que, a despeito das divergências estruturais nos diferentes cenários do ensino médico, são relativamente homogêneos em todas as regiões brasileiras.

Desta forma, além de aulas, cursos, atividades de pesquisa e assistência em diferentes cenários da prática médica, seria importante a inserção dos alunos na comunidade, por meio de atividades educativas, preventivas ou de promoção à saúde, como feiras de saúde e campanhas, objetivando melhorar a qualidade de vida da população e adquirir mais experiência e conhecimento.

Tavares et al. (2004) afirmam que estas atividades são extremamente comuns e constituem "parte importante do treinamento da maioria dos estudantes de medicina brasileiros, servindo claramente como complementação de seu treinamento sabidamente deficiente na maioria de nossas escolas " (TAVARES et al., 2004, p.6).

Por outro lado, segundo Peres et al. (2007), o envolvimento de alunos em atividades extracurriculares não representa apenas uma tentativa de preencher lacunas curriculares, mas também de integrar-se com colegas e de atender a indagações profissionais. Vieira et al., num estudo com o objetivo de identificar e descrever as atividades extracurriculares de estudantes de Medicina, citam-nas como estratégia de socialização e mecanismo de adaptação e combate ao estresse.

Esta aspiração por atividades práticas dos participantes das LA parece relacionada ao desejo de reconhecimento social e à satisfação da necessidade do graduando de praticar suas habilidades precocemente, abrandando a necessidade psicossocial de ser reconhecido como um adulto profissionalmente capaz.

Apesar dos inúmeros benefícios que a formação das LA podem trazer à formação médica, elas podem oferecer riscos à formação profissional seja por falta de orientação pedagógica seja por inadequada supervisão docente, conferindo aos estudantes autonomia inaceitável e incompatível com seu nível de formação. Para Taquette et al. (apud HAMAMOTO FILHO et al., 2010) , uma das possíveis consequências dos estágios práticos sem supervisão adequada é a aprendizagem de conceitos e técnicas errados e a incorporação de condutas antiéticas à prática profissional.

É fundamental que as LA não se afastem muito da sua função primária de extensão universitária, deixando em segundo plano ou ignorando totalmente as atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde.

É referido também o risco de que as atividades das ligas tragam uma carga horária adicional, nos moldes das atividades acadêmicas de rotina, reproduzindo a lógica meritocrática e as relações burocratizadas e hierárquicas da instituição, fortalecendo um ambiente competitivo na escola médica. Dessa forma, fazendo com que a atuação nestas seja apenas mais uma forma de aumentar os curriculum vitae dos alunos com certificados de participação, ou ainda uma forma de se destacar diante de alguns professores, buscando a futura seleção para os programas de residência. As LA também não deveriam se prestar ao papel de simplesmente antecipar conteúdos curriculares que serão oferecidos posteriormente ao aluno, ao longo do curso.

Algumas ligas se tornam espaços de "especialização precoce", oferecendo riscos ao inserirem o estudante em práticas clínicas de áreas específicas, e não oferecendo qualquer serviço em prol da comunidade.

Preocupa, também, o fato da multiplicação acrítica das LA, sem que se levem em consideração sua relevância acadêmica e social, a clareza e coerência pedagógica de seus objetivos, seu modelo de gestão (sustentabilidade, critérios para entrada de membros, interação com outras LA), e sua ideologia (democratização, articulação com o Sistema Único de Saúde, amplo entendimento dos processos de adoecimento e respeito a princípios éticos e humanísticos).

Peres e Andrade (2005) concluíram que pouco se sabe a respeito do impacto das atividades extracurriculares sobre o desenvolvimento psicossocial e cognitivo, o rendimento acadêmico e o ajustamento do estudante à Universidade. Mesmo assim, não há dúvidas sobre a necessidade de implementar medidas de racionalização de abertura de novas ligas.

As ligas acadêmicas, portanto, merecem atenção nas discussões sobre educação médica. É fundamental dirigir a atenção ao seu modelo de funcionamento e avaliar objetivamente seu impacto na educação médica. Acredita-se que o crescimento do número de ligas deve ser analisado criticamente.

Espera-se que as propostas de novas ligas tenham relevância acadêmica e social, articulem bem as propostas de ensino, pesquisa e extensão, tenham modelo de gestão adequado para autossustentabilidade e democratização de processos, bem como respeito a princípios éticos e humanísticos nas atividades planejadas.

Do ponto de vista da participação dos alunos nos rumos das instituições, é fundamental que as LA não sirvam simplesmente para preencher lacunas curriculares, diminuindo o envolvimento e o interesse - tanto de discentes quanto de docentes - na discussão sobre mudanças curriculares necessárias. Corre-se o risco de as LA se tornarem apenas apêndices das disciplinas curriculares, num mecanismo de funcionarem apenas como "tapa-buracos".

As LA podem desempenhar um papel interessante na formação médica, devendo-se permanecer atento para que não caiam na armadilha de se configurarem como meras reproduções das distorções existentes na formação médica, mas na verdade se contraponham a estes problemas. Nelas, idealmente, os estudantes devem ter oportunidade de fazer escolhas de modo ativo e livre, ter iniciativas inovadoras, trocar experiências e interagir com colegas interessados nos mesmos assuntos e escolhidos por afinidade.

Espera-se que, nesse contexto, os estudantes possam adquirir conhecimentos práticos sem pressão, com mais satisfação e de modo mais significativo, desenvolver potenciais intelectuais, afetivos e relacionais, assim como a capacidade crítica e reflexiva, exercer a criatividade, a espontaneidade e a liderança, sendo mais atores e menos expectadores do processo ensino-aprendizagem.

Deste modo, as LA poderiam contribuir de fato para a adequada formação de um médico generalista humano e ético, reflexivo e crítico, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania. As LA podem favorecer o desenvolvimento de um profissional capaz de perceber e acolher o paciente em sua complexa integralidade biopsicocultural, capaz de trabalhar, respeitosa e construtivamente, em equipe multidisciplinar, e disposto a procurar ativa e permanentemente o conhecimento.

Referências
TORRES, A. R. et al. Ligas Acadêmicas e formação médica: contribuições e desafios. Interface Botucatu,  v. 12,  n. 27, 2008
FERREIRA, Lívia Leal et al. Ligas acadêmicas: o que há de positivo? Experiência de implantação da Liga Baiana de Cirurgia Plástica. Salvador – BA. Rev Bras. Cir. Plástic, 23(3): 158-61, 2008
HAMAMOTO FILHO, P. T. et al. Normatização da abertura de ligas acadêmicas: a experiência da Faculdade de Medicina de Botucatu. Rev. bras. educ. med.,  Rio de Janeiro,  v. 34,  n. 1, 2010
PERES, C. M.; ANDRADE, A. S.; GARCIA, S. B. Atividades extracurriculares: multiplicidade e diferenciação necessárias ao currículo. Rev. bras. educ. med.,  Rio de Janeiro,  v. 31,  n. 3, 2007.
AZEVEDO, R.P.; DINIZ, P.S. Guia para construção de Ligas Acadêmicas. Ribeirão Preto: Assessoria Científica da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, 2006
TAVARES, A. P.; FERREIRA, R. A.; FRANÇA, E. B.  et al. O "Currículo Paralelo" dos estudantes de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Rev Bras Educ Med. 31(3): 254-65, 2007.
MAFRA, S. Ligas acadêmicas. Diretórios Acadêmicos: CREMEPE, Pernambuco, v.2, n.7, 2006.

20 de junho de 2011

O temido exame de próstata

"Eu queria avaliar sua próstata, e não avaliá-lo prostrado."

In: ACP Hospitalist and American College of Physicians, junho de 2011.
Charge de  David Y. Gelman.

O toque retal é uma medida preventiva de baixo custo para o câncer de próstata, porém é um procedimento ao qual muitos homens ainda se mostram resistentes, e isso não decorre necessariamente da falta de informações sobre a importância dessa medida preventiva. É necesária atenção dos profissionais à saúde em relação a estratégias educativas para a promoção da saúde no sentido da prevenção do câncer de próstata.

Transtorno do Pânico

Por Bruno Melo Fernandes
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB

Resumo
O transtorno do pânico é um dos transtornos de ansiedade mais prevalentes, e caracteriza-se pela ocorrência de ataques de pânico de maneira espontânea e recorrente. Com a evolução do quadro, o paciente passa a temer estar em locais públicos, onde possa ser difícil procurar ajuda, desenvolvendo frequentemente agorafobia. O diagnóstico precoce é fundamental para evitar danos piores ao aparelho psíquico do paciente.

Palavras-chave: Transtorno do Pânico. Agorafobia. Transtornos de Ansiedade.

Os transtornos de ansiedade configuram os transtornos psiquiátricos mais prevalentes da atualidade, provocando grande demanda nos serviços de saúde. A ansiedade pode ser definida como um estado de humor desconfortável, um sentimento de defesa, que alerta o indivíduo quanto à possibilidade de um perigo ou ameaça iminente de algo desconhecido. A ansiedade difere do medo, ou fobia, pois aquele representa o temor de algo conhecido pelo indivíduo.

A ansiedade é um sentimento vago e desagradável, que pode ser vivenciada de diversas maneiras por cada pessoa. Ela faz parte do desenvolvimento normal de todo ser humano, permitindo que a pessoa se prepare para situações adversas ou inesperadas. Sendo assim, a presença da ansiedade é algo completamente normal.

Nesse contexto, os transtornos de ansiedade caracterizam-se por respostas inadequadas a uma situação ansiogênica, real ou imaginária. Essa inadequação caracteriza-se principalmente pela intensidade e duração do quadro.

Dentre os transtornos ansiosos, um dos mais conhecidos e estudados é o transtorno do pânico, reconhecido tanto pelo Classificação Internacional de Doenças, CID-10, quanto pela Associação Americana de Psiquiatria (DSM-IV-R). O transtorno do pânico caracteriza-se pela ocorrência espontânea e inesperada de ataques de pânico, que ocorrem de forma recorrente.

Os ataques de pânico são crises agudas e graves de ansiedade, de curta duração, e seus sintomas podem ser confundidos com outras condições clínicas, o que faz os pacientes procurarem serviços de emergência clínica. Esses ataques geralmente não estão ligados a situações ou predispostos por situações, com ocorrência repentina, tendo como características apreensão, medo, intenso terror e frequentemente sentimentos de incapacidade.

O transtorno do pânico é comumente associado à agorafobia, a qual é o medo de estar sozinho em locais públicos, especialmente naqueles onde possa ser difícil sair ou receber algum auxílio, caso sobrevenha um ataque de pânico. Na verdade, o paciente começa a apresentar os ataques e progressivamente vai desenvolvendo um temor de apresentá-los em determinados lugares e situações, em que seja difícil receber auxílio. Com isso, ele vai progressivamente deixando de frequentar determinados locais, até ficar totalmente restrito a poucos ambientes que lhe são familiares.

As comorbidades psiquiátricas associam-se com maior dos sintomas ansiosos e maior déficit cognitivo. Estas comorbidades podem ser prévias secundárias ao transtorno do pânico. É frequente a coexistência de comorbidades relacionadas ao uso de álcool ou abuso de outras substâncias químicas. A comorbidade de fobia social com transtorno de pânico pode trazer implicações para o diagnóstico, devido à sobreposição de sintomas.

O transtorno do pânico é muito frequente na prática clínica. A prevalência do transtorno do pânico varia de 1,5% a 5%, sendo mais frequente em mulheres. A média de início é de 25 anos e o único fator social que parece estar envolvido no desenvolvimento do quadro é a história recente de divórcio. Em muitos casos, o quadro pode estar relacionado a um evento traumático e vir acompanhado de comorbidades, como depressão, ideação suicida e abuso de substâncias.

O transtorno apresenta gênese em alterações neurobiológicas, envolvendo três principais neurotransmissores: noradrenalina, serotonina e GABA. Sabe-se ainda que fatores genéticos fazem parte da etiologia do transtorno do pânico, sendo de quatro a oito vezes maior a chance de desenvolvimento de transtorno do pânico em pacientes com parentes com o referido transtorno.

Aparentemente não há nenhum fator desencadeante para a ocorrência dos ataques, os quais podem ocorrer até durante o sono. Em geral, principalmente nos primeiros episódios, a ocorrência é totalmente espontânea. A crise dura em geral de vinte a trinta minutos, com rápida progressão dos sintomas, atingindo o máximo da sua intensidade em dez minutos.

Os sintomas psíquicos principais são extremo medo, sensação de morte e catástrofe iminentes, desrealização e despersonalização. Os sintomas físicos incluem palpitações, sudorese profusa, tremores, boca seca, sensação de falta de ar, náuseas, dor abdominal, dor torácica, tontura, parestesias, entre outros,  alcançando intensidade máxima em até cerca de dez minutos. O paciente abandona qualquer atividade que esteja fazendo para procurar ajuda.

Quando há agorafobia, além dos ataques, o paciente passa a ter atitudes evitativas quanto a locais públicos e a sair desacompanhado. Com o tempo, deixa de sair de casa e torna-se incapaz de interagir socialmente se desacompanhado.

O diagnóstico é clínico e fenomenológico, e deve-se ter em mente que os ataques de pânico podem ocorrer também em outros transtornos psiquiátricos, como no transtorno de personalidade generalizada e nas fobias, não sendo sua simples ocorrência diagnóstica de transtorno do pânico. É necessário, para diagnóstico o preenchimento dos critérios do DSM-IV ou da CID-10, sendo preciso ataques recorrentes, sem fator causal, com desenvolvimento de preocupação em desenvolver novos ataques. A presença de agorafobia não é necessária para o diagnóstico, é um diagnóstico a parte.

O curso da doença é, em geral crônico, sendo fundamental o tratamento para o controle dos sintomas. Sem o correto diagnóstico e terapia, o paciente inexoravelmente evolui para o desenvolvimento agorafobia, comorbidades graves e ideação suicida.

Além do sofrimento psíquico e do prejuízo funcional dos pacientes com transtorno do pânico, pode haver associação a uma série de outros problemas, como maiores taxas de absenteísmo e menor produtividade no trabalho, maiores taxas de utilização dos serviços de saúde, procedimentos e testes laboratoriais, e como já mencionado, ideação de suicídio e até de tentativas de suicídio.

O diagnóstico diferencial do transtorno do pânico inclui ataques secundários a uma condição clínica (hipertireoidismo, feocromocitoma), uso ou abstinência de substâncias (abuso de cocaína, abstinência de álcool) e outros transtornos psiquiátricos.

O diagnóstico precoce do transtorno do pânico é fundamental para evitar danos piores ao aparelho psíquico do paciente.

Referências
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. DSM-IV-TR. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4 e.d. rev. Porto Alegre: Artmed, 2002.
FYER, A.; MANNUZZA, S.; COPLAN, J. D. Transtorno de Pânico e Agorafobia. KAPLAN, H. SADOK, B. (Orgs). Tratado de Psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 1300-1313, 1999.
MONTIEL, J. M.; CAPOVILLA, A. G. S.; BERBERIAN, A. A. et al. Incidência de sintomas depressivos em pacientes com transtorno de pânico. Psic, 6 (2): 33-42, 2005.
SALUM, G. A.; BLAYA, C.; MANFRO, G. G. Transtorno do Pânico. Rev Psiquiatr, RS, 31 (2): 86-94, 2009.

Imagem: "O Grito", famosa obra impressionista do artista norueguês Edvard Munch (1893).

17 de junho de 2011

Xerostomia

Por Gabriela Lemos Negri
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB


Resumo
A xerostomia corresponde a uma sensação subjetiva de escassez ou carência absoluta de saliva na cavidade oral. Também conhecida como asialorreia ou boca seca, não constitui uma entidade clínica por si só, antes representando uma manifestação de uma disfunção no aparato salivar. São inúmeras as causas atualmente conhecidas como responsáveis por esse sintoma, devendo-se destacar: uso de certos medicamentos, especialmente os quimioterápicos; emprego de tratamentos baseados no uso de radiações ionizantes; diabetes mellitus; e doenças auto-imunes, sobretudo a síndrome de Sjögren. Trata-se de um sintoma com consequências físicas, psicológicas e sociais importantes.  É importante que os médicos tenham um adequado conhecimento deste problema.

Palavras chave: Xerostomia. Boca Seca. Estomatologia.

A xerostomia (do grego xero: seco; stoma: boca) representa a manifestação clínica mais comum das disfunções salivares, sendo definida pela percepção subjetiva de boca seca, resultante de uma diminuição no fluxo salivar. Inicialmente acreditava-se que essa manifestação era própria de pessoas da terceira idade, no entanto, estudos mais recentes demonstram que cerca de 20% das pessoas acometidas apresentam idade em torno de 20 anos, enquanto 40% têm mais de 60 anos. A frequência observada também foi maior em mulheres, em virtude das inúmeras alterações hormonais associadas com a gravidez, climatério e menopausa.

A saliva desempenha um papel essencial na manutenção da saúde bucal. Além de atuar na umidificação dos tecidos da cavidade oral, sua propriedade lubrificante auxilia no processo de formação e deglutição do bolo alimentar, auxilia a fonética e também na proteção dos tecidos contra danos tanto por agentes mecânicos quanto por microorganismos nocivos. Estudos recentes desenvolvidos na França pelo Instituto Pasteur identificaram ainda a presença de propriedades calmantes e analgésicas do fluxo salivar.

Assim, se a saliva desempenha um importante papel na proteção do ambiente oral, e as reduções na quantidade de saliva aumentam o risco de doenças bucais. Xerostomia ou a percepção de uma boca seca agora está sendo reconhecido como um importante fator de risco para doenças dentárias. Além disso, a sensação subjetiva de boca seca é uma condição debilitante por si mesma, pelo impacto sobre a qualidade de vida dos doentes afetados. Uma em cada cinco pessoas relatam alguma forma de boca seca, e há uma crescente prevalência na população idosa.

A diminuição da saliva pode acarretar uma série de sintomas, como sensação de ardor e dolorimento na língua; distúrbios gastrointestinais; secura bucal; dificuldades na fala, mastigação e percepção do sabor dos alimentos conduzindo, entre outros, a distúrbios de nutrição. Pode-se observar também o aparecimento de fissuras nas comissuras labiais, dipsia constante, presença de aftas bucais, acúmulo de placa dental bacteriana, halitose, desgaste do esmalte dentário, maior suscetibilidade a infecções por Candida albicans. As cáries e a doença periodontal representam uma das principais complicações da xerostomia, que frequentemente é acompanhada de palidez, perda do brilho e adelgaçamento da mucosa.

A hipofunção das glândulas salivares pode resultar de diversas causas como: doenças sistêmicas, transtornos de ansiedade, desidratação e infecções agudas das glândulas salivares. A xerostomia crônica, com asialorréia permanente, relaciona-se frequentemente com doenças autoimunes, infecciosas, alérgicas, reumatológicas (sobretudo a síndrome de Sjögren), anomalias congênitas, menopausa, fibromialgias, radioterapia no câncer (cerca de 60 a 88% dos casos com doença oncológica avançada), diabetes mellitus, transtornos psiquiátricos, doença de Alzheimer, AIDS e uso de substâncias adictivas como álcool e tabaco. Uma outra afecção comumente responsável por essa manifestação em mulheres é o diabetes gestacional. Contudo, o uso de medicamentos ainda é a principal causa de secura bucal.

O diagnóstico é eminentemente clínico. Deve-se fazer uma avaliação minuciosa da cavidade oral, podendo-se empregar métodos quantitativos que determinem a secreção salivar em repouso ou sob estimulação, caso seja necessário.

Referências
ALMEIDA, J.P; KOWALSKI, L. P. Pilocarpina no tratamento de xerostomia em pacientes submetidos à iodoterapia: estudo piloto. Braz. j. otorhinolaryngol. 76 (5): 659-662, 2010.DONAT, F. J. S; SANDOVAL, A. P. Efectos adversos del tratamiento del cáncer oral. Av Odontoestomatol 24 (1): 111-121, 2010.
BASCONES, A et al. Conclusiones del Simposium 2007 de la Sociedad Española de Medicina Oral sobre "Xerostomía, Síndrome de Boca Seca, Boca Ardiente". Av Odontoestomatol 23, (3): 119-126, 2007.
HESPANHOL, F. L. et al. Manifestações bucais em pacientes submetidos à quimioterapia. Ciênc. saúde coletiva, 15 (suppl.1): 1085-1094, 2010.
HOPCRAFT, M. S.; TAN, C. Xerostomia: an update for clinicians. Aust Dent J, 55(3):238-44, 2010.
JIMENEZ, E. et al. Xerostomía: Diagnóstico y Manejo Clínico. Rev Clin Med Fam. 2 (6): 300-304, 2009.
PALACIOS, J. A. et al. Xerostomía y uso de medicamentos en adultos. Rev Cubana Estomatol, 45 (3-4): 0-0, 2008.

Fonte da imagem: hometreatment.net

13 de junho de 2011

História da Bioética: Relatório do X Seminário de MHB3 em 2011.1



Realizou-se hoje o décimo e último seminário do período 2011.1 no Módulo de História da Medicina e da Bioética (MHB3) / UFPB. O tema foi “História da Bioética”, apresentado e defendido por Aluiziane, Maísa, Alysson, Natália e Alana.

A exposição do tema foi iniciada por Aluiziane, que apresentou os fundamentos filosóficos da ética, definindo o termo, comentando as diferenças entre ética e moral, assim como entre ética e filosofia. Apresentou ainda o pensamento dos filósofos gregos sobre ética, sobretudo Sócrates, Platão e Aristóteles. Continuou, reportando-se à Idade Média, ao sintetizar as principais ideias de São Tomás de Aquino relacionadas à ética; ele considerava o homem como um sujeito que, apesar de tender para o bem, estava sujeito a diversos obstáculos em seu caminho, e deveria ser educado para evitar seus instintos naturais. Na sua lógica, a filosofia, e nesta, a ética, submete-se à fé em Deus.

Aluiziane ainda discorreu sobre ideias de importantes pensadores da Modernidade e da Contemporaneidade a respeito da ética. Na Idade Moderna, destacou Immanuel Kant, cuja filosofia moral preconiza que a base para toda razão moral é a capacidade do homem de agir racionalmente. O fundamento é a crença de que uma pessoa deve se comportar de forma igual à que ela esperaria que outra pessoa se comportasse na mesma situação, tornando assim seu próprio comportamento uma lei universal. Na formulação do chamado "imperativo categórico", Kant fundamentou a ética no dever de atuar somente quando este seja convertido em lei universal. “Imperativo” porque constituem um dever de atuação, “categórico” porque é incondicional, não subordinado a nenhum fim. Daí, a máxima: “ Age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa se convertido em lei universal”.

Na contemporaneidade, Aluiziane destacou Peter Singer e Hugo Tristram Engelhardt. Peter Singer é um filósofo australiano conhecido e dos mais importantes especialistas em ética aplicada, entre outras coisas, por sua defesa moral do aborto e eutanásia, assim como o debate sobre o status moral dos animais não-humanos. Com a publicação da obra Animal Liberation ("Libertação Animal", no Brasil), Singer enfatiza que a única base plausível sobre a qual se pode defender o princípio da igualdade para todos os seres exige, por coerência, que se estenda essa igualdade a animais não-humanos. Engelhardt, médico, filósofo e bioeticista de Houston/EUA propôs que a Bioética “funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais”. Ele defende a secularidade nos diálogos bioéticos sendo, ele próprio, cristão ortodoxo e, carregando, portanto, ideias “conservadoras” sobre temas como aborto e manipulação de embriões. Em sua obra clássica "The foundation of bioethics", defende o paradigma libertário, que tem pressupostos no Humanismo e no Secularismo. A bioética como disciplina secular, orientada filosoficamente, não dependente apenas de profissionais de saúde, deveria ser o panorama da ética contemporânea pluralista. Sua concepção de pessoa constitui uma ferramenta útil nas questões éticas, frente ao desenvolvimento das ciências biomédicas.

Por fim, Aluiziane discorre sobre “personalidade jurídica” como valor ético de origem constitucional, especialmente relacionada com a dignidade da pessoa humana inserida num contexto social. O reconhecimento da personalidade jurídica refere-se aos direitos do ser humano desde sua existência. No Brasil, inicia-se a personalidade jurídica com o nascimento.

Maíze abordou importantes violações éticas na história da medicina. As pesquisas antiéticas mais conhecidas são, sem dúvida, aquelas praticadas pelos médicos nazistas nos campos de concentração na II Guerra Mundial. Mas eles não foram os únicos a sacrificar seres humanos no altar do conhecimento científico. Muitos pesquisadores dos Estados Unidos também mostravam pouca preocupação com as pessoas que usavam como sujeitos de suas pesquisas.

Maíze começou referindo que em 1962, publicou-se um artigo na revista Life com o título de "Eles decidem quem vive e quem morre” e em que se discutia a questão de médicos nefrologistas americanos estavam decidindo quem iria para os programas de diálise crônica, já que este tipo de tratamento estava no seu início e não era disponível para todos os que necessitavam dele. Assim, as raízes da bioética encontram-se historicamente inseridas no progresso das ciências médicas.

A partir de 1962, principalmente em Seattle/EUA, inúmeras discussões surgiram com a possibilidade de realização de diálise em pacientes com insuficiência renal crônica. O excesso de pacientes e a carência de equipamentos fez, então, com que fossem estabelecidos comitês, compostos por leigos, que estabeleciam critérios para a utilização dos mesmos. Devido a característica de decidir acerca da sobrevida ou não dos pacientes, estas comissões passaram a ser denominadas, pela imprensa, de "Comitês Divinos".

Maíze continuou afirmando que o uso generalizado de antibióticos e técnicas artificiais de respiração, popularizados nas décadas de 1950 e 1960, abrem perspectivas novas de prolongar a vida humana. Com a primeira transferência renal bem sucedida, em 1954, a medicina de transplante vê-se obrigada a lidar com os mecanismos de aquisição e distribuição de órgãos. Com isso, critérios até então aceitos acerca de morte cerebral tornam-se duvidosos e moralmente controvertidos.

Continuando a apresentação de eventos que tiveram grandes implicações éticas relacionadas a condutas desumanas de cientistas e médicos, Maíze citou um estudo realizado para avaliar a história natural da sífilis iniciado em 1932 na cidade de Tukesgee, no Alabama (EUA), em que se acompanharam indivíduos negros de baixo poder econômico, sendo 408 deles com sífilis e mantidos sem tratamento. Os resultados foram publicados em 1954 em uma revista de Saúde Pública dos Estados Unidos e mostravam que a mortalidade dos pacientes não tratados era maior que a dos indivíduos sem sífilis. O estudo prosseguiu, mantendo os pacientes sem tratamento, mesmo já existindo terapêutica medicamentosa eficaz para a doença, e só foi interrompido em 1972, quando houve uma denúncia na Revista New York Times. Os sujeitos dessas pesquisas recebiam refeições e exame médicos gratuitos, além de terem garantido um seguro-funeral em troca de sua participação no projeto. As informações sobre a verdadeira origem da doença foram sonegadas dos pacientes e àqueles que perguntavam sobre a fonte dos sintomas que apresentavam, respondia-se que eles tinham o “sangue ruim” (bad blood). Pela sua repercussão, o estudo de Tuskegee foi um marco no que diz respeito à ética na medicina e na confiabilidade dos objetivos da pesquisa científica.

Ainda a respeito de estudos semelhantes, Maíze referiu uma pesquisa realizada na Guatemala com quase 700 participantes, que eram pacientes psiquiátricos internados, presidiários e prostitutas, com o objetivo de avaliar o uso da penicilina em doenças sexualmente transmissíveis, como sífilis, gonorréia e cancro. Eram feitas inoculações diretas dos agentes infecciosos, e de forma intencional, em presidiários e pacientes com problemas psiquiátricos. Em relação à sífilis, a inoculação era feita através de injeções subcutâneas de Treponema pallidum.

Maíze passou, então, a relatar várias “experiências” médicas nazistas, realizadas durante a II Guerra Mundial por médicos alemães. Foram procedimentos desumanos, cruéis, e muitas vezes mortais, envolvendo milhares de prisioneiros dos campos de concentração. Muitas dessas experiências tinham como finalidade promover a sobrevivência dos militares alemães, estudando-se reações às elevadas altitudes, usando câmaras de baixa pressurização. Os cientistas alemães também realizaram experiências de congelamento, utilizando os prisioneiros como cobaias para descobrir um método eficaz de tratamento para a hipotermia. Outra categoria de experiências tinha por objetivo desenvolver e testar medicamentos, assim como métodos de tratamento para ferimentos e doenças que os militares e a equipe de ocupação alemã encontravam no campo. Ainda outra categoria de experiências “médicas” buscava aprofundar os princípios raciais e ideológicos da visão nazista. Os mais abjetos foram as experiências feitas por Josef Mengele, em Auschwitz, que utilizou gêmeos de forma inumana. Mengele foi apelidado de o “Anjo da Morte” pelos prisioneiros, porque tinha boa aparência e era aparentemente simpático com as crianças do campo, e, no entanto, cruelmente, fazia seleções destas para as câmaras de gás. Ele mandou executar 400 mil prisioneiros, entre judeus, homossexuais e deficientes físicos. Os poupados da morte imediata eram enviados para barracões, onde ficavam as cobaias humanas de seus experimentos. Entre eles, havia principalmente irmãos gêmeos, anões e portadores de deficiências físicas. Mengele dissecava anões vivos tentando comprovar que eram fruto da excessiva miscigenação de raças e jogava prisioneiros em água fervente para ver o quanto suportariam.

Os fatos relatados acima, as pesquisas em seres humanos feitas pelos nazistas durante a II Guerra Mundial e o grande aumento dos recursos dispendidos pelos laboratórios farmacêuticos para pesquisa de novos fármacos, impuseram a necessidade de se estabelecerem normas éticas para as pesquisas em seres humanos. Finalizando, Maíze citou a consumação do Tribunal de Nuremberg em 1946, que gerou o Código de Nuremberg em 1947, a primeira recomendação internacional sobre experimentos envolvendo seres humanos. Estes aspectos normativos continuarão, posteriormente, a ser relatados por Natália, neste seminário.

Alysson deu continuidade à apresentação, abordando a evolução do conceito de Bioética. Este termo já é utilizado há 40 anos. O primeiro a usá-lo foi o médico oncologista norte-americano Dr. Van Rensselaer Potter, em 1970, em um artigo científico. A sua caracterização inicial era a seguinte: “Nós temos uma grande necessidade de uma ética da terra, uma ética para a vida selvagem, uma ética de populações, uma ética do consumo, uma ética urbana, uma ética internacional, uma ética geriátrica e assim por diante...”. Depois, Potter utilizou o termo em seu livro: “Bioética: Uma Ponte para o Futuro”, em 1971. Potter estava pensando em ecologia quando inventou a palavra “bioética”, em 1970, não em aspectos éticos ou bioéticos reacionados apenas à saúde. Seu foco direcionou-se à ética e o meio ambiente.

Alguns meses após Potter ter introduzido o novo termo, alguns estudiosos da Georgetown University, tendo o médico obstetra, fisiologista fetal e demógrafo André Hellegers à frente, utilizavam o mesmo neologismo, mas com um sentido diferente. A bioética, segundo o "modelo Georgetown", seria um campo interdisciplinar da própria filosofia moral (e não da ciência e filosofia como era para Potter), e que deveria tratar de dilemas biomédicos concretos restritos a três áreas: os direitos e deveres dos pacientes e dos profissionais de saúde; os direitos e deveres na pesquisa envolvendo seres humanos; e a formulação de uma diretriz para a política pública, o cuidado médico e a pesquisa biomédica.

A bioética, portanto, nasce de duas concepções, aparentemente inconciliáveis. De um lado, a concepção de Potter, que vinculava duas formas de conhecimento (ciências naturais e ciências humanas), fundando-se duas tradições disciplinares diferentes e legítimas, cada uma no seu campo de aplicação específico. De outro, a concepção do Instituto Kennedy, que a considerava uma disciplina pertinente ao campo da filosofia aplicada aos dilemas biomédicos.

Alysson prosseguiu afirmando que a bioética trata de temas específicos como nascer/não nascer (aborto), morrer/não morrer (eutanásia), saúde/doença (ética biomédica), bem-estar/mal-estar (ética biopsicológicas) e de novos campos de atuação do conhecimento, como a clonagem (ética genética). Dentre as diversas práticas da bioética, destacam-se atividades terapêuticas em sentido amplo, pois todo e qualquer exercício das relações profissionais de médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos, nutricionistas, biólogos, fisioterapeutas e demais técnicos em saúde, assim como os usuários das novas técnicas biomédicas e farmacológicas, tornam-se destinatários do discurso bioético.

A seguir, Alysson referiu-se ao Prof. Warren Reich, membro do Kennedy Institute of Ethics, da Universidade Georgetown/EUA, e co-editor da Enciclopédia de Bioética. Estudioso pioneiro da bioética nos EUA, Warren Reich considera Potter, André Hellegers e Sargent Shriver como os “pais” da bioética. A bioética no seu nascedouro é definida pela Enciclopédia de Bioética (1978) como sendo “o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada à luz de valores e princípios morais”.

O conceito de bioética não foi aceito com facilidade na Alemanha. Era considerado controverso (como um “produto americano”). Somente a partir de 1986, o termo é oficialmente introduzido e passa a ser utilizado com mais frequência. O bioeticista alemão Hans-Martin Sass, que trabalhou no Instituto Kennedy de bioética nos EUA, resgata do silêncio da história, a figura de Fritz Jahr, outro alemão que criou um avançado conceito de bioética ainda em 1927. Jahr era um pastor protestante e filósofo que publicou um importante artigo, intitulado “Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas”. Nesta publicação, Jahr propõe um “Imperativo Bioético”, ampliando o imperativo moral de Kant (“Age de tal modo que consideres a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa dos outros, sempre como fim e nunca como simples meio"), para todas as formas de vida.

Ainda apresentando os conceitos de Bioética, Alysson refere-se ao Prof. André Comte-Sponville, que utiliza o referencial de Jean Paul Sartre que já havia dito que "todos somos responsáveis por todos" e de Dostoievsky, "somos todos responsáveis por tudo, diante de todos". Segundo ele, bioética não seria uma parte da biologia, mas uma parte da ética, e uma parte da responsabilidade humana, referente aos deveres do homem para com outro homem, e de todos para com a humanidade.

Prosseguindo com a conceituação de diversos pensadores sobre bioética, relatou o conceito de Eve-Marie Engel, de que “bioética como a reflexão ética sobre os seres vivos, incluído o ser humano, tais como esses seres vivos se apresentam nas relações cotidianas do mundo vivido e nos contextos teóricos bem como práticos da ciência e da pesquisa.” Ainda refere-se à conceituação emanada do Programa Regional de Bioética OPS/OMS (2001), de que bioética é o uso criativo do diálogo para formular, articular e, na medida do possível, resolver os dilemas que são propostos pela investigação e pela intervenção sobre a vida, a saúde e o meio ambiente.

A Associação Médica Mundial desenvolveu a Declaração de Helsinque como uma declaração de princípios éticos para fornecer orientações aos médicos e outros participantes em pesquisas clínicas envolvendo seres humanos. Alysson mencionou também a Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial, que se refere ao médico e afirma que "A Saúde do meu paciente será minha primeira consideração", e o Código de Ética Médica Internacional declara que "O médico deve agir somente no interesse do paciente ao promover cuidados médicos".

Concluindo sua exposição, Alysson cita a Declaração Íbero-Latino-Americana sobre Ética Genética, elaborada pelos participantes dos Encontros sobre Bioética e Genética de Manzanillo (1996) e de Buenos Aires (1998), procedentes de diversos países Íbero-Americanos e Espanha; esta declaração reafirma a adesão aos princípios da Declaração Universal sobre o Genoma e os Direitos Humanos da Unesco, promovendo, ainda, uma série de reflexões a respeito das implicações do desenvolvimento científico e tecnológico no âmbito da genética, além dos preceitos éticos que devem guiar estas ações.

No Brasil, o Prof. Joaquim Clotet implantou a primeira disciplina de Bioética em 1988 no Curso de Pós-Graduação em Medicina da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “A Bioética não é uma disciplina, é uma atitude diante da vida” é uma frase de Clotet em 2005.

Natália passou, então, a abordar o histórico das comissões de ética médica e ética em pesquisa envolvendo seres humanos, porém antes mencionou casos de polêmicas relacionadas à bioética envolvendo pacientes em situações extremas de vida, como os de Karen Quinlam e do Baby Doe.

Em 1975, Karen Ann Quinlam, de 22 anos, deu entrada na sala de emergência do Hospital de Nova Jersey com quadro de coma profundo. Após meses em coma irreversível, seus pais solicitaram à equipe médica a retirada do aparelho de respiração artificial que mantinha a ventilação pulmonar de Karen. A direção do Hospital negou o pedido dos pais e o caso percorreu diversas esferas de decisão judicial até que, finalmente, a Suprema Corte de Nova Jersey, em 1976, designou que o Comitê de Ética do Hospital St. Clair deveria estabelecer o prognóstico da paciente e assegurar que a mesma realmente nunca seria capaz de retornar a um "estado cognitivo sapiente". O juíz da Suprema Corte de New Jersey presumiu, erradamente, que este hospital, assim como a maioria dos demais hospitais norte-americanos, possuia um Comitês de Ética que avaliasse esse tipo de situação. Como este Comitê não existia, foi constituído um especialmente para avaliar este caso. O resultado foi uma recomendação para a retirada da paciente do respirador.

Outro caso que teve muita repercussão foi o do Baby Doe, um recém-nascido com malformações múltiplas (trissomia do 21 e fístula traqueoesofágica) de Bloomington, no estado de Indiana/EUA, em 1982. Os seus pais negaram-se a assinar um termo autorizando a realização de uma cirurgia corretiva da fístula, que tinha 50% de chances de lhe salvar a vida. Os pais solicitaram, ainda, que fosse suspensa a alimentação e os demais tratamentos da criança. A equipe médica solicitou à Justiça autorização para realizar a cirurgia, suspendendo, temporariamente o pátrio poder. A Justiça negou o pedido em primeira instância. O bebê, aos seis dias de vida morreu, não havendo tempo para que fossem feitas outras tentativas. Doe, em inglês, significa "fulano", uma pessoa qualquer, sem especificar a sua identidade. Foi utilizada esta denominação com o objetivo de preservar a família envolvida.

O primeiro transplante cardíaco em 1967 também trouxe grandes questionamentos éticos: estaria o doador morto ou não? O coração havia sido retirado respeitando ou não os desejos do doador quando vivo? Somente em 1968 houve a definição de morte encefálica pela Universidade de Harvard. As discussões geradas pela realização do primeiro transplante cardíaco em seres humanos, realizado por Christian Barnard deveriam ser discutidas por toda a sociedade, sendo criada uma comissão no senado americano para avaliá-las. O Dr. Barnard compareceu a esta Comissão e afirmou que criar comissões de ética para avaliar procedimentos realizados em hospitais "seria um insulto aos médicos e um enorme retrocesso ao progresso". O Dr. Henry Beecher, que havia denunciado em 1966 inúmeros casos de artigos científicos publicados com inadequações éticas, também depôs nesta Comissão, e contrariou o Dr. Barnard, afirmando que a "ciência não é o valor maior ao qual todos os outros valores devem se subordinar; a ciência deve estar inserida em uma ordem de valores".

Em 1973, Senador Edward Kennedy propôs ao Congresso Norte-Americano, a criação de uma Comisão sobre Qualidade da Assistência à Saúde e Experimentação em Humanos. Esta nova proposta foi desencadeada pelo impacto causado pela divulgação dos experimentos realizados em Tuskegee. Como resultado disso, criou-se uma comissão permanente, a Comissão Nacional para a Proteção de Seres Humanos, englobando a avaliação de aspectos científicos e assistenciais. Em 1978, este comitê foi alterado e ampliado, recebendo a denominação de "Comissão Presidencial para o Estudo de Problemas Éticos na Medicina e Pesquisa Biomédica e Comportamental". Em 1983, esta comissão incentivou a criação dos comitês de ética nos hospitais.

Em 1987, entrou em vigor uma lei, no estado de Maryland, obrigando a criação de comitês consultivos de ética em hospitais, com o objetivo de assessorar a tomada de decisão em doentes com risco de vida. Esta foi a primeira vez que uma lei obrigava instituições hospitalares a constituírem comitês de bioética. Atualmente, em função de exigências sociais, culturais ou legais, existem diferentes tipos de comissões de ética atuando no âmbito das instituições de saúde. As primeiras a surgir foram as Comissões de Ética e Deontologia Médica, depois surgiram as Comissões de Ética em Pesquisa em Saúde e, mais recentemente, as Comissões de Bioética.

Na década de 1990 a ética em pesquisa com seres humanos foi instituída no Brasil. A Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde mudou significativamente os procedimentos éticos das pesquisas envolvendo pessoas. A implantação e desenvolvimento do primeiro Comitê de Ética em Pesquisa criado no Brasil ocorreu na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Os Comitês de Ética em Pesquisa surgem como órgãos de grande importância para a realização de pesquisas na instituição. Por eles tramitam todos os protocolos em que se planeja o desenvolvimento de pesquisas com seres humanos, difundindo na comunidade acadêmica os aspectos éticos envolvidos no projeto, esclarecendo ao indivíduo e à coletividade os referenciais básicos da bioética, quais sejam, a autonomia, a não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, que visam assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, em relação aos sujeitos de pesquisa e ao Estado.

Na última parte do seminário, Alana falou sobre as questões de bioética da atualidade, como as pesquisas com células-tronco, a clonagem, o aborto, a eutanásia, a morte encefálica, o transplante de órgãos e o uso de “cobaias” humanas em pesquisas médicas.

As perspectivas de estabelecer terapias celulares para tratar tecidos danificados com pequena capacidade de regeneração são promissoras. Do ponto de vista ético, o uso das células-tronco adultas não representa problemas. Trata-se de um procedimento equiparável ao de transplante de tecido no próprio corpo. Retiram-se as células-tronco da própria pessoa e injetam-se no lugar onde o tecido está danificado. Contudo, em relação às células tronco embrionárias, estas só podem ser obtidas mediante manipulação de embriões. Estes embriões são obtidos por fecundação in vitro, e destinados a implantação com vistas à gestação. Como nem todos os embriões são implantados, prevê-se o seu congelamento; esses embriões congelados seriam utilizados após três anos, para pesquisa, com consentimento do casal que os gerou. A retirada da célula-tronco provoca a destruição do embrião.

Portanto, a pesquisa com células-tronco adultas não representa dificuldade ética especial e tem o apoio da Igreja. A Igreja Católica posiciona-se  contra as pesquisas com células-tronco embrionárias, pelo mesmo motivo que condena o aborto, ou seja, por considerar o embrião um ser humano. Essas pesquisas, na visão da igreja, significariam a manipulação da vida humana pelo homem.

No Brasil, só em 2005 foi aprovada a Lei de Biosegurança que regulamenta o uso de células tronco embrionárias e apenas a partir desta data foi possível o início dos primeiros estudos básicos com estas células. Além disso, as pesquisas básicas, pré-clínicas e clínicas, com células tronco embrionárias ou adultas no Brasil dependem de financiamento público, uma vez que a lei brasileira não permite patentear linhagens celulares, ao contrário do que ocorre nos EUA.

Quanto à clonagem humana, trata-se de um outro tema vasto e complexo. Os avanços tecnológicos, que permitem que a clonagem de mamíferos saia do domínio da ficçao científica e entre no domínio de possibilidades reais, provocam não apenas discussões de ordem técnica, mas também, discussões éticas e jurídicas sobre limites a serem impostos a esse tipo de atividade e penalidades a impor se houver transgressões.

Alana mencionou a clonagem reprodutiva e a terapêutica como técnicas já existentes. A clonagem terapêutica poderia trazer bons resultados, ao proporcionar curas para determinadas doenças, como o mal de Alzheimer. O Reino Unido foi o primeiro país a aprovar uma lei que autoriza a clonagem de embriões de seres humanos, proibindo, contudo, a clonagem para fins reprodutivos.

A Igreja Católica pediu, em 1997, que essa prática fosse proibida, tal como no Brasil. Aqui, a Lei nº 8974 de 05.01.1995 e o Decreto nº 2577 de 30.04.1998 consideram crime qualquer manipulação genética de células germinais humanas ou qualquer intervenção em material genético.

Alana mencionou ainda, nesse contexto, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, adotada pela Conferência Geral da Unesco, já mencionada neste seminário. Em seguida, a referida expositora mencionou brevemente os aspectos bioéticos relacionados ao abortamento. No Brasil, a questão do aborto possui dupla abordagem. Por um lado, o desenvolvimento tecnocientífico ocorrido nas últimas décadas proporcionou o diagnóstico cada vez mais precoce de malformações fetais e doenças genéticas incompatíveis com a vida extrauterina, como, por exemplo, a anencefalia. Esse fato desencadeou uma série de processos jurídicos solicitando permissão para a interrupção voluntária dessas gestações, nos países com leis proibitivas em relação ao aborto induzido.

Os avanços mais recentes na área da genética tem contribuído para o surgimento de novos dilemas antes não enfrentados pela sociedade. Técnicas sofisticadas têm permitido, na atualidade, suspeitar, de forma fundamentada, da existência de defeito genético ou de doenças graves transmitidas pelos genitores e que levarão a criança a apresentar deformidades que poderão viabilizar, apenas por um tempo indeterminado e com limitações, a vida extra-uterina, ou mesmo tornar inviável a vida após o nascimento. O aborto eugênico, na atualidade, embora não obrigatório, é permitido na maioria das nações. O fato de ser legal o aborto nessas hipóteses não elimina, na maioria das vezes, a presença do conflito nas pessoas envolvidas, especialmente na gestante e no seu grupo familiar, e nos profissionais da saúde envolvidos com o caso.

Embora a atual legislação brasileira não permita o aborto eugênico, o Poder Judiciário concedeu desde 1983 120 autorizações para a realização de aborto em crianças mal formadas, especialmente anencéfalos (Folha de São Paulo 4/11/95:3-2). Os profissionais médicos, em geral orientam-se pelo critério da beneficência, os pacientes pelo da autonomia e a sociedade pelo de justiça. A bioética é um elemento a mais na busca de reflexão adequada sobre este tema.

No Brasil, o aborto é considerado crime. São criminosos o médico e a mãe que o praticam. Mas não se pune o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto terapêutico) e se a gravidez resulta de estupro.

Merece destaque, nesse contexto, a definição do momento em que inicia a vida. Vários são os critérios, destacando-se, no campo científico, o celular (fecundação), o cardíaco (início dos batimentos cardíacos, 3 a 4 semanas), o encefálico (atividade do tronco cerebral, 8 semanas), o neocortical (início da atividade neocortical, 12 semanas), o respiratório (movimentos respiratórios, 20 semanas), o neocortical (ritmo sono-vigília, 28 semanas), o moral (comunicação, 18 a 24 semanas após o parto).

Para a Igreja, o aborto significa a morte de um ser humano. O Papa Bento XVI comparou o aborto e as pesquisas em embriões ao terrorismo, defendendo a ação política da Igreja contra o aborto.

Eutanásia é o processo de proporcionar morte sem sofrimento a um doente incurável. Esse sistema é proibido em vários países, inclusive no Brasil, onde a prática da eutanásia é considerada homicídio. A aplicação dos princípios éticos – beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça – deve ser realizada numa sequência de prioridades. Quanto à bioética, é importante observar que os princípios da beneficência e da não-maleficência são prioritários sobre os da autonomia e da justiça. O médico por questões éticas, deve assistir ao paciente, fornecendo-lhe todo e qualquer meio necessário à sua subsistência, ao alívio do sofrimento e do desconforto, porém evitando a distanásia, que é a obsessividade terapêutica, a agonia prolongada, a morte com sofrimento físico ou psicológico. Quanto à Igreja, esta também mantem-se irredutível em sua posição contra a eutanásia.

Por fim, Alana mencionou brevemente a condição das “cobaias” humanas, a utilização de pessoas em testes de fármacos e vacinas sem a observância dos atuais preceitos internacionalmente recomendados para pesquisas utilizando sujeitos humanos. Os relatos anteriores neste seminário sobre experimentos nazistas, asim como os outros realizados nos EUA, foram experimentos com cobais humanas.

Atualmente são denunciadas pesquisas em que presumivelmente se utilizam “cobaias” humanas. Para ilustrar este aspecto com uma obra de ficção, Alana mencionou o filme "O Jardineiro Fiel". No Brasil, em 2005, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) desmentiu a notícia de que moradores do Amapá estavam sendo usados como cobaias em pesquisas sobre malária. Este assunto pode ser lido em outra postagem deste blog, com link abaixo:
 http://semiologiamedica.blogspot.com/2010/10/consentimento-informado.html

Para terminar, Alana mencionou a Teoria Principialista, emanada através do Relatório Belmont, que preconiza os princípios da Beneficência, da Autonomia e da Justiça. Estes também já foram abordados em outra postagem deste blog, com link abaixo:
http://semiologiamedica.blogspot.com/2010/11/cobaias-humanas-em-pesquisa-de-vacina.html

Fonte da Imagem: 3quarksdaily.com