4 de janeiro de 2009

Formação humanística do estudante de Medicina


Dizia Sir William Osler, que "os estudos humanísticos são os hormônios que catalisam o pensamento e humanizam a prática médica".
Hoje, cerca de 100 anos depois, repete-se muito esse aforisma, como outras palavras, mas com o mesmo significado. Esse tema insere-se no debate sobre a necessidade de recuperar a dimensão humana do médico. Este é um desafio para os que se preocupam com a formação médica.
O próprio William Osler idealizou junto aos seus alunos a construção de uma biblioteca e sugeriu uma lista de livros que deveriam estar sempre ao lado do médico, entre eles a Bíblia, as obras de Shakespeare, Montaigne e Don Quixote. Atualmente, em virtude dos vários questionamentos sobre a formação humanística do médico, muitas escolas médicas passaram a demonstrar uma maior preocupação em ensinar as humanidades a seus alunos.

Segundo Chervel e Compere (1999), a etimologia da palavra "humanidades" remete ao neologismo humanitas, pela qual Cícero traduz o grego "paideia". A educação, assim oferecida, se pretende como uma preparação do indivíduo ao seu papel de homem, no sentido pleno do termo. As humanidades são, em princípio, também uma educação moral. "Paidéia" é uma palavra grega cujo significado refere-se à prática educativa e à formação cultural do cidadão. Remete à idéia de educação ligada aos conteúdos da cultura, das práticas artísticas, entre outros aspectos que configuram a formação contemporânea do indivíduo. Assim, o conceito de paidéia, entendida como a busca do sentido de uma teoria consciente da educação e do agir do homem em sociedade, permanece como um ideal de toda educação.
Porém, hoje, a especialização e a superespecialização fazem parte do cenário atual das universidades, que estão cada vez mais buscando atender às necessidades de profissionais para o mercado de trabalho. E não é apenas na Medicina. Essa formação, no entanto, centrada no tecnicismo e no profissionalismo, pode não estar atendendo às necessidades reais da atuação do médico. A especialidade deve ser tratada como parte de uma totalidade e não pode servista como fora dela. Segundo Bazzo (1998), este processo é difícil de ser realizado e deve ser feito por meio de uma formação que privilegie o tratamento interdisciplinar da especialidade e uma formação disciplinar com conteúdos de humanidades. A superespecialização dos estudantes pode gerar problemas sociais, cegando o profissional para qualquer consideração que ultrapasse o âmbito de suas competências técnicas. Um profissional especialista irá se comportar em todas as questões que ignora, conforme Sartor (2004), não como um ignorante, mas como um "sábio petulante no assunto".
O humanismo, na concepção de Paviani e Dal Ri Jr. (2000), objetiva ao desenvolvimento das qualidades do homem, pregando que todas as pessoas têm dignidade e valor, devendo-se fazer jus ao respeito dos outros. O estudante universitário deveria possuir uma formação geral também, com "caráter transformador do sentir, pensar e agir humanamente, centrado em uma visão de sociedade que interage" (LINSINGEN, 2005).
Assim, as escolas médicas têm o compromisso de preparar os estudantes para as questões morais e éticas com as quais eles vão se deparar na vida profissional. O desafio atual é, então, de transformar a educação médica, oferecendo à sociedade médicos competentes, mas também mais humanos e éticos.É necessário ampliar o repertório semiológico do médico, através de uma revalorização das dimensões psicológica e da efetiva inclusão da dimensão social do ser humano, como forma de enriquecer os processos do diagnóstico e da conduta. E isso faz parte essencial da formação humanística do médico.
O que seria, então, a "formação humanística do médico"? Não significa apenas ter compaixão e empatia pela pessoa do doente, ainda que isso seja imprescindível na prática médica. Porém, é mais que isso. A concepção de Pessotti (1996) sempre me pareceu perfeita para uma definição essencial desta questão, e eu a repito muitas vezes aos meus alunos de Semiologia: “Não se trata de ser humanitário, embora isso também seja desejável: trata-se de ser, em alguma medida, um humanista, um conhecedor, mesmo principiante, do que constitui a essência da chamada natureza humana: a criação de valores, a atribuição de significado e sentido aos eventos e condições da vida.” (PESSOTTI, 1996, p. 446).
O jovem médico, desde antes da sua graduação, já carrega sua escala de valores éticos, estéticos e outros, e não se despe deles na relação com os pacientes. Seu acerto clínico e benefício que pode fazer ao paciente dependerá de quanto ele for capaz de perceber os significados que a vida, a doença, a figura do médico, a saúde ou a integridade corporal. Como salienta Pessotti (1996), em um excelente texto sobre a formação humanística do médico, o jovem que escolhe essa carreira não é uma tabula rasa, uma folha em branco: ele tem uma motivação sua, pessoal, para buscar essa profissão. Ele traz valores, que associou ao seu conceito de Medicina, muito antes do ingresso no curso médico. Valores que adquiriu na sua educação e na sua experiência pessoal pregressa. E que, ao longo do curso médico, não estarão esquecidos ou extintos.
Swenson e Rothstein (1996) referem que a formação em ética médica é imprescindível, e deve decorrer da necessidade de que o médico tenha mais compaixão, e que se formem médicos eticamente competentes. Os alunos de medicina devem compreender os dilemas morais que moldam seu mundo, mas também aprender a responder a esses dilemas. Por isso, cada vez mais educar o estudante de medicina é tentar estimular suas possibilidades humanas, em uma atividade formativa abrangente, que contemple a pessoa na sua totalidade, que mostre caminhos e promova atitudes duradouras.
Claro que os avanços científicos são uma coisa fabulosa, e devem ser valorizados na formação médica, mas uma formação completa em equilíbrio com as exigências da vida inclui também uma boa formação humanística. Então, essa é uma questão que deve ser valorizada pelos professores e pelos próprios estudantes.
Publicações recentes vem enfatizando a importância das humanidades da literatura na educação médica (SHAH et al., 2008; GRAVES et al., 2002; PETTUS, 2002). Para atender a chamada para a aplicação da espiritualidade na escola médica currículo, a Escola de Medicina da University of Missouri - Kansas City (EUA) incorporou o tema da espiritualidade como instrução para o terceiro ano médico. O objetivo deste programa é expandir nos estudantes o conceito do paciente como pessoa, incluindo dimensões das suas crenças espirituais e necessidades, além de desenvolver nos alunos uma compreensão de como a crença espiritual afeta a saúde dos pacientes. Os autores reconhecem que o aluno com crenças espirituais têm um impacto positivo na sua prática da medicina (GRAVES et al., 2002).
Experiência nessa mesma linha pedagógica foi implementada em outras ecolas médicas americanas. Como descreve Pettus (2002), a escola de medicina de Massachussets (EUA) criou estratégias que incluem seminários com o tema "Comunicando más notícias", que é baseado em uma interação experiencial através de filmes sobre a difícil "arte" da partilha de más notícias e muitas vezes traumáticas com os pacientes e seus familiares, além de uma série de palestras mensais que analisa os diversos aspectos das práticas religiosas e espirituais e as suas implicações em matéria de ciências e saúde. São abordados pontos de vista religiosos a partir de uma perspectiva judaico-cristão e as filosofias orientais, como budismo e hinduísmo, além da discussão do efeito da diversidade cultural sobre o modo como as pessoas compreendem e lidam com a doença.
Por outro lado, os estudantes recebem uma abordagem global, baseada em evidências currículo que engloba toda a literatura médica referentes à espiritualidade, religião e saúde. O tema da terminalidade e cuidados paliativos e suas implicações éticas também são abordados.
Contudo, há outro aspecto a ser salientado nessa questão: o aluno de medicina, sobretudo no início da graduação, é um jovem e, portanto, está vivenciando várias etapas de seu desenvolvimento como ser humano. Filósofos que estudam desenvolvimento moral constatam que os indivíduos normalmente progridem no início da idade adulta de uma fase em que se baseiam seu comportamento nas normas e valores das pessoas à sua volta para mais uma fase em que se identificam com esses princípios e tentar viver de acordo com seus valores morais pessoais. Branch (2000) reporta dados que sugerem que muitos estudantes de medicina, que deveriam estar nesta transição desenvolvimental, mostram pouca mudança moral. Possivelmente, essa percepção está relacionada com pressões para se conformarem com o pragmatismo da área médica.
Muitos estudantes experimentam, segundo este autor, consideráveis conflitos internos, uma vez que lutariam para acomodar valores pessoais relacionados com a empatia, cuidado e compaixão com seu treinamento clínico. Intervenções educativas que influenciem positivamente este processo poderiam estabelecer oportunidades para a reflexão crítica pelos alunos em pequenos grupos. O referido autor considera que esta "crise desenvolvimental do estudante de medicina" merece que ele seja oriantado e que isso inclui muito mais do que incentivá-los a pensar sobre dilemas éticos, mas que vivenciem as situações na própria prática clínica.
O autor a que recorremos (BRANCH, 2000) continua, afirmando que a escola de medicina deveria promover o desenvolvimento moral dos seus alunos. Medicina, afinal, é uma profissão moral. Isso é complicado também porque os alunos podem estar individualmente em diferentes níveis de desenvolvimento e podem responder de forma diferente aos desafios colocados pelo início trabalho clínico. Alguns podem continuar a sua formação moral sem problemas, apesar de todas as adversidades.
Outros, com diferentes níveis de conforto, podem aceitar a moralidade convencional dos que os rodeiam. Alguns irão expressar pouco interesse em participar de atividades educacionais que incidem sobre valores pessoais e de ética médica. Estes alunos podem ser aqueles que têm maior necessidade de ações educativas que possam crira condições para que questionem os seus pressupostos. Além disso, o desconforto manifestado por muitos alunos quando começam a ser socializados em papéis clínicos é provavelmente um bom. Isso pode indicar que esses alunos estão lutando para manter os seus valores morais vivo.
O processo educativo deve criar as oportunidades onde eles também possam aprender uns com os outros. Devem também aprender com os professores, que podem servir de exemplo, ajudar a esclarecer os alunos "os princípios morais”, assim como promover normas para o grupo em que o compromisso com os valores morais do pessoal seja praticado. Vários aspectos da educação médica, em conjunto, podem criar um clima educativo que influencie positivamente o desenvolvimento moral do estudante de medicina. Isso poderia ser feito através de reflexão crítica em pequenos grupos de estudantes e professores, juntamente com um feedback dado pelos professores nas enfermarias.
A formação humanística não equivale, portanto, somente ao conhecimento das doutrinas da Filosofia ou das Ciências do Homem a respeito da natureza humana. Ela implica tal conhecimento, mais ou menos amplo, e principalmente a capacidade de enxergar e de entender o paciente-pessoa, o paciente com seus valores (PESSOTTI, 1996).

Referências 
BAZZO, W. A. Ciência, tecnologia e sociedade e o contexto da educação tecnológica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1998. 
BRANCH, W. T. Jr. Supporting the moral development of medical students. J Gen Intern Med. 15 (7):503-8, 2000. 
CHERVEL, A.; COMPERE, M. As humanidades no ensino. Educ. Pesqui. v. 25, n. 2 p. 149-170, 1999. 
SHAH, S.; ROYDHOUSE, J.K.; SAWIER, S.M. Medical students go back to school--the Triple A journey. Aust Fam Physician. 37 (11): 952-4, 2008. 
GRAVES, D.L.; SHUE, C.K.; ARNOLD, L. The role of spirituality in patient care: incorporating spirituality training into medical school curriculum. Acad Med. 77 (11): 1167, 2002 
LINSINGEN, I. Novos modelos de produção e a formação do engenheiro: uma abordagem CTS. Disponível em: <http://www.emc.ufsc.br/nepet/Artigos/Texto/Mod_Prod.htm> Acesso em 04 jan 2009 
PAVIANI, J.; DAL RI JUNIOR, A. Globalização e Humanismo Latino. Porto Alegre: Edipucrs, 2000 
PESSOTTI, I. A formação humanística do médico. Medicina, Ribeirão Preto, 29: 440-448 1996 
PETTUS, M. C. Implementing a medicine-spirituality curriculum in a community-based internal medicine residency program. Acad Med. 77(7):745, 2002. 
SARTOR, V. V. D. B. Humanismo e dos compromissos intergeracionais: Repensando as Organizações: da Formação à Participação. Florianópolis: Editora Fundação Boiteux, 2004 
SWENSON, S.L.; ROTHSTEIN, J. A. Navigating the wards: teaching medical studentes to use their moral compasses. Acad Med 71(6):591-4, 1996 Crédito: Foto da postagem extraída de: http://www.human-inquiry.com/hummed.htm