8 de dezembro de 2025

UMA PLURALIDADE DE DRAMAS SOCIAIS CHEGA AOS SERVIÇOS DE SAÚDE: Memória de Roda de Conversa

 Memória de Aula 

Roda de Conversa sobre Competência Cultural na Saúde
Disciplina: Diversidade Étnica e Cultural na Medicina, III período do curso
Curso: Graduação em Medicina, Centro de Ciências Médicas, UFPB
Atividade: Roda de Conversa
Tema: Competência Cultural na Saúde
Turma: Turma 121 Med/UFPB
Docente: Profa. Rilva Muñoz

1. Contextualização da Atividade
Nesta aula, realizamos uma roda de conversa com os estudantes para discutir o conceito de competência cultural na saúde, articulando-o com experiências práticas, vivências pessoais e reflexões críticas a partir do artigo previamente indicado para leitura. A atividade buscou promover uma escuta coletiva, estimular a autorreflexividade e fomentar a construção de uma postura ética e inclusiva no cuidado em saúde.

2. Síntese das Contribuições Orais dos Estudantes 
Cristus
Cristus iniciou destacando que a ausência de competência cultural se traduz, também, em falta de profissionalismo. Ele ressaltou que, embora cada profissional tenha suas crenças pessoais, estas não podem interferir no cuidado prestado aos pacientes. A necessária neutralidade ética e o respeito às diferenças foram apontados como princípios fundamentais do exercício profissional.
Abraão
Abraão relacionou a competência cultural ao princípio da integralidade no SUS, enfatizando que a prática em saúde demanda atenção aos vieses individuais dos profissionais, de modo a garantir equidade e evitar tratamentos diferenciados injustificados.
Gabrielle
Gabrielle compartilhou que desconhecia o termo “competência cultural” antes da leitura do artigo, mas reconheceu sua importância. Destacou que essa competência exige autocrítica e autorreflexividade, para que o profissional identifique limitações e preconceitos que possam interferir na qualidade do cuidado.
Rodrigo
Rodrigo afirmou que desenvolver competência cultural implica deixar crenças pessoais de lado no momento do atendimento. Ele refletiu sobre o papel regulamentador do Conselho Federal de Medicina, apontando que, muitas vezes, suas decisões parecem desconsiderar o princípio da laicidade do Estado, o que pode impactar a assistência em temas sensíveis.
Kaylanne
Kaylanne trouxe a discussão sobre o despreparo institucional no acolhimento de famílias homoafetivas. A partir do vídeo analisado, destacou que o registro de nascimento de crianças de mães homoafetivas é frequentemente direcionado apenas ao cartório, diferentemente do fluxo habitual para casais heterossexuais, que costuma iniciar nas maternidades. Para ela, as instituições precisam garantir igualdade de procedimentos e preparo para lidar com diferentes configurações familiares.
Tatiana
Tatiana refletiu sobre a importância de desenvolver uma mente inclusiva, reconhecendo que muitos preconceitos são internalizados desde a infância. Relatou uma experiência vivida em um pronto-socorro, onde testemunhou um tratamento desrespeitoso dirigido a um homem em situação de rua e alcoolista. Observou um contraste marcante entre o cuidado ofertado a esse paciente e o cuidado oferecido ao seu sogro, evidenciando disparidades de trato baseadas em estigma social.
Compartilhou também um exemplo positivo: a conduta de um fonoaudiólogo que perguntou a uma mulher trans como ela gostaria de ser chamada e passou a tratá-la pelo nome escolhido, "Stephanie", durante todo o atendimento — gesto simples, mas fundamental para o respeito identitário.
Elias
Elias destacou que a competência cultural envolve camadas visíveis e invisíveis, utilizando a metáfora do iceberg estudada no artigo. Observou que, muitas vezes, o modo como algo é dito é tão significativo quanto o conteúdo da fala, revelando posturas mais profundas que nem sempre são explícitas.
Lara
Lara relatou uma vivência durante atividade com populações vulnerabilizadas, especialmente em visita ao Coletivo Maria Quitéria, onde presenciou situações de violência institucional contra um homem trans em processo gestacional. Destacou que não basta o profissionalismo técnico: é necessária uma desconstrução ativa de vieses e a superação de “armaduras” simbólicas que muitos profissionais carregam diante de grupos identitários.
Após discutirmos competência cultural e suas implicações éticas, Cristus retomou sua participação trazendo uma reflexão importante. Ele observou que, muitas vezes, “a gente acaba atacando muito o profissional”, no sentido de responsabilizá-lo diretamente pelas falhas no cuidado. Em seguida, lançou a pergunta que abriu nova rodada de debate: “Mas como culpá-lo? O que fazer diante disso?”
Tatiana respondeu destacando que, embora os desafios sejam grandes, o profissional de saúde precisa assumir a responsabilidade de estudar continuamente, se atualizar e reconhecer seus limites. Para ela, a atualização não é opcional: faz parte da ética profissional. Tatiana reconheceu que o contexto é complexo, mas compartilhou um exemplo pessoal: mencionou que seu pai, com 85 anos, mantém uma postura aberta, inclusiva e respeitosa, mostrando que a sensibilidade cultural não depende apenas de gerações ou modismos, mas de disposição subjetiva e de valores cultivados ao longo da vida.
Em seguida, Elaine trouxe uma experiência marcante de sua formação. Ela explicou que veio de Boa Vista, em Roraima, região que recebe grande fluxo de migrantes venezuelanos. Contou que, certa vez, acompanhou o atendimento de uma mãe venezuelana que buscava cuidado para seu filho, que apresentava quadro de larva migrans cutânea. Ao relatar o caso, Elaine ressaltou que uma das barreiras mais evidentes no atendimento intercultural é a comunicação, não apenas a barreira linguística, mas também a maneira como nos comunicamos, incluindo tom de voz, postura, acolhimento e esforço para construir compreensão mútua. Para ela, aquele episódio evidenciou como a comunicação transcende o idioma: envolve reconhecer o outro, sua vulnerabilidade e seu contexto de migração e deslocamento.
Prosseguindo com a roda de conversa, Leandro trouxe uma contribuição que ampliou ainda mais ainda o olhar da turma sobre a realidade do atendimento intercultural. Ele comentou que, em sua percepção, não há como atuar em Roraima sem estudar cultura porque o cotidiano do cuidado naquele contexto geopolítico está profundamente atravessado pela presença de populações migrantes. Ele contou que morou anteriormente no Tocantins e, ali, já observava práticas culturais específicas entre imigrantes venezuelanos. Uma delas, muito comum, era o hábito de comer com as mãos, prática tradicional em diversas regiões do mundo e carregada de significados socioculturais. Segundo ele, perceber essa diversidade de costumes o fez compreender que o encontro clínico não acontece apenas entre um profissional e um paciente, mas entre mundos culturais diversos. Essa fala reforçou a ideia de que o profissional de saúde precisa desenvolver não só conhecimento técnico, mas também competência cultural para reconhecer, respeitar e dialogar com práticas e significados diferentes dos seus. Como Leandro sintetizou, “não dá para atender lá sem estudar cultura”, lembrando ao grupo que a clínica é sempre um encontro entre identidades, histórias de vida, modos de viver e de significar o corpo.
Dando continuidade ao meu registro e à memória da aula, seguimos aprofundando a roda de conversa sobre competência cultural na prática médica. Em determinado momento, Rodolfo trouxe uma contribuição importante ao comentar sobre os regionalismos presentes não apenas entre diferentes estados, mas dentro do próprio território paraibano. Ele mencionou, por exemplo, que no Sertão da Paraíba termos  como “espinhaço” fazem parte do vocabulário cotidiano e podem aparecer espontaneamente durante um atendimento. Esse simples exemplo abriu espaço para refletirmos sobre como a linguagem regional, as formas de expressão e os modos de nomear fenômenos podem impactar a compreensão clínica.
Valéria destacou que ainda existem muitos estereótipos que atravessam as práticas de saúde e influenciam a forma como os profissionais interpretam comportamentos, expressões culturais e modos de vida dos pacientes. Diante disso, ela enfatizou que, na dúvida, a atitude mais responsável e culturalmente competente é perguntar, ou seja, abrir espaço para que o próprio paciente explique o que significa determinada prática, expressão ou hábito. Para Valéria, essa postura evita julgamentos precipitados, reduz mal-entendidos e fortalece a construção de um cuidado verdadeiramente respeitoso e centrado na pessoa.
Tayla relatou um atendimento hipotético em que uma médica precisaria acolher uma família que traz uma menina de 13 anos, grávida, participando, ela e a família de uma seita, em que a adolescente vivia maritalmente com o líder da comunidade religiosa, e questionava como proceder diante de uma situação permeada por uma estrutura familiar e comunitária com forte adesão a valores religiosos específicos. Esta situação descrita envolvia uma grave violação de direitos humanos, possível violência sexual, violência institucionalizada por uma seita, além de questões éticas, legais e clínicas que tornam a atuação do médico altamente sensível, e não opcional, que é uma situação de dever legal de notificação e proteção por parte do médico em um atendimento.
Nesse momento, Cristus retomou a discussão levantando uma questão crucial: até onde podemos, ou devemos, aceitar essa situação como parte da cultura do outro durante o atendimento? A provocação nos levou a revisitar o equilíbrio entre acolher práticas culturais diversas e reconhecer os limites éticos, legais e de segurança que orientam a profissão médica no Brasil. A partir dessa pergunta, eu provoquei a turma a pensar sobre o próprio conceito de seita. Perguntei: o que entendemos por seita? E mais: como essa compreensão influencia a postura profissional diante de situações clínicas que envolvem crenças, normas e estruturas comunitárias que podem, ou não, conflitar com princípios bioéticos, legislações vigentes e diretrizes de proteção à infância e adolescência? 
O debate seguiu vivo, evidenciando que a competência cultural exige do profissional não apenas conhecimento, mas sobretudo discernimento ético, sensibilidade comunicacional e clareza sobre os limites da prática médica. Trata-se de reconhecer a cultura do outro, sem se omitir diante de eventuais violações de direitos, riscos ou vulnerabilidades, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes. Considero que, pela complexidade da situação em tela, será necessário abordar cuidadosamente a questão em outra publicação, onde seja possível colocar todas as implicações médico-legais envolvidas.

3. Síntese das Contribuições por Escrito dos Estudantes 
Letícia compartilhou que considerou muito interessante o conceito de segurança cultural. Ela comentou que, em um primeiro momento, o termo lhe pareceu confuso, mas ao longo da discussão compreendeu que ele representa um passo além da competência cultural. Para ela, a segurança cultural diz respeito a práticas que realmente fortalecem o paciente, promovendo seu empoderamento e contribuindo para relações de cuidado mais horizontais, menos marcadas por assimetrias de poder.
Pedro observou que, no primeiro caso discutido, a postura da profissional foi claramente preconceituosa e discriminatória, pois as concepções pessoais não podem invadir a esfera do cuidado. Quando isso acontece, fragiliza-se a relação terapêutica e limita-se a participação ativa do paciente. Ele destacou que o profissional precisa constantemente desconstruir seus próprios vieses e revisar a forma como se dirige ao outro, buscando um cuidado mais inclusivo e respeitoso. Em relação à situação complexa apresentada por Tayla, Pedro afirmou que sua conduta seria a de denunciar o caso, considerando os riscos envolvidos e a necessidade de proteger a adolescente.
Participaram ainda por escrito os estudantes Clara (necessidade de contato com a pluralidade cultural), Luiz (um médico não pode se omitir diante da violação de crianças), Juleandro (necessidade de o curso de medicina possuir disciplinas que abordem a inclusão social), Jéssica (menção à violência simbólica perpetrada por médicos diante de pacientes transgênero), Vinícius (o atendimento médico transcende o caso puramente clínico), Vike (o médico precisa aprender a dialogar com a multiplicidade de saberes e identidades), Gleyson (palavras e atitudes dos médicos podem afastar os pacientes culturalmente diversos do serviço de saúde), Júlia (a aceitação de práticas de cura tradicionais pode aproximar a população do serviço de saúde), Haécio (a competência cultural é um continuum com um polo positivo e outro negativo), Angélica (as visões homofóbicas devem ser combatidas  e o respeito deve ser mútuo na relação médico-paciente), Aline (o conceito de competência cultural abarca os princípios do nosso Sistema Único de Saúde, principalmente o da Integralidade), Júlia (o meio da Saúde enquanto instituição é extremamente conservador e exclui as minorias sociais), Ítallo (o profissionalismo médico precisa incluir necessariamente a competência cultural), Samuele (médicos frequentemente expressam preconceitos de forma sutil e a autocrítica reflexiva pode contribuir para  superação desses vieses implícitos), Rafael (profissionais mais antigos têm uma defasagem na sua formação humanística no que se refere à atenção integral às minorias sociais), e Julyane (o processo de ensino-aprendizagem dos profissionais da saúde ainda parece ser fraco e insuficiente).

4. Reflexões Finais da Aula
A discussão ocorrida com a turma 121 da Graduação em Medicina da UFPB evidenciou que os alunos compreenderam que a competência cultural é um processo contínuo, que envolve conhecimento, habilidades e atitudes, mas sobretudo humildade cultural, capacidade de escuta, autorreflexão crítica, desconstrução de preconceitos e compromisso ético com a diversidade humana.
A roda de conversa mostrou sinais de maturidade e sensibilidade dos estudantes em reconhecer tanto desafios estruturais quanto responsabilidades individuais na construção de práticas de saúde mais inclusivas, justas e alinhadas às necessidades reais da população.
Encerrando a memória desta roda de conversa, ficou evidente que a discussão sobre competência cultural ultrapassa a mera identificação de diferenças linguísticas, comportamentais ou religiosas. A discussão revelou também que, para atuar de forma culturalmente competente, o profissional precisa desenvolver uma postura investigativa, empática e crítica, capaz de reconhecer significados implícitos, evitar julgamentos precipitados e, simultaneamente, manter firmeza na proteção de direitos e na observância das normativas profissionais. O caso hipotético envolvendo uma adolescente, marcado por pertencimento religioso específico, demonstrou com clareza o desafio de equilibrar respeito à cultura com responsabilidade ética.
O encontro mostrou, de forma muito viva, que se trata de uma habilidade complexa, que exige dos futuros médicos uma postura contínua de escuta, curiosidade genuína e autorreflexão. A cada exemplo trazido pelos alunos, desde os regionalismos do Sertão até cenários envolvendo dinâmicas familiares marcadas por forte religiosidade, emergiu a compreensão de que a cultura não é um adorno periférico do cuidado, mas sim um determinante central na forma como pessoas expressam sofrimento, entendem o corpo e se relacionam com a autoridade médica.
As participações dos estudantes também revelaram que a prática clínica está sempre situada em um campo de tensões: entre acolher e questionar, entre respeitar e proteger, entre reconhecer diferenças e afirmar princípios éticos inegociáveis. No caso discutido sobre a adolescente grávida, por exemplo, tornou-se nítido que a competência cultural não se confunde com relativismo moral; pelo contrário, ela exige que o profissional saiba discernir quando uma prática cultural é compatível com a legislação e com a proteção integral da pessoa, e quando ela pode configurar risco ou violação de direitos.
A discussão mostrou também que desenvolver competência, e também segurança cultural exige deslocamentos internos: rever preconceitos, compreender os efeitos do poder na relação clínica, transformar a escuta em ferramenta terapêutica e assumir a alteridade como parte estruturante do cuidado. Mais do que identificar diferenças culturais, trata-se de construir vínculos que reconheçam a dignidade do outro, sem relativizar violações de direitos.
Ao final, a turma reconheceu que essa competência só se desenvolve plenamente quando o profissional é capaz de integrar conhecimento técnico, sensibilidade ética e humildade cultural. Isso implica compreender que nenhuma prática médica se sustenta sem considerar a pluralidade de mundos sociais que chegam aos serviços de saúde — mundos que se expressam em palavras, silêncios, gestos, crenças e expectativas. 
Como enfatizamos durante a aula, cuidar é sempre encontrar o outro em sua singularidade, sem perder de vista o compromisso com a dignidade humana, com a justiça social e com a responsabilidade profissional.
Assim, esta memória registra não apenas uma aula, mas um exercício de formação ampliada, no qual os estudantes puderam experimentar o desafio de pensar criticamente sobre o lugar da cultura no cuidado em saúde e sobre o papel transformador que podem assumir ao acolher, compreender e agir diante das múltiplas realidades que compõem o mosaico cultural do nosso país. É nessa interseção entre saber técnico e sensibilidade humana que se desenha uma prática médica eticamente forte e socialmente comprometida.
Os estudantes puderam compreender que a prática médica, enquanto encontro entre subjetividades, exige do profissional não apenas conhecimento técnico, mas também maturidade para identificar quando determinada prática cultural pode representar risco, vulnerabilidade ou violação de direitos. Ao mesmo tempo, exige abertura para aprender com o outro, ajustando a comunicação de modo a construir entendimento mútuo e garantir que o cuidado seja realmente integral.
Dessa forma, a roda de conversa cumpriu seu propósito pedagógico: fomentar reflexão crítica, ampliar a sensibilidade para as diferentes dimensões da diversidade e reafirmar que a competência cultural não é um atributo opcional, mas um componente essencial da boa prática médica. O debate permaneceu como convite para que cada estudante siga aprofundando essa perspectiva ao longo de sua formação e atuação profissional.

Síntese Final

Profissionais culturalmente competentes:

✨ reconhecem seus vieses por meio da autorreflexão crítica;

✨ acolhem identidades culturalmente diversas;

✨ agem com empatia e alteridade na relação com seus pacientes;

✨ garantem equidade no cuidado; e  

✨ contribuem para fortalecer o SUS e os direitos humanos.