6 de julho de 2011

Pelagra: Aspectos clínico-epidemiológicos

Por Gabriela Lemos Negri
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB

Resumo
A pelagra corresponde ao estágio final de deficiência em niacina (ou vitamina B3). Como a deficiência de niacina afeta funções celulares em múltiplos órgãos e tecidos, as manifestações clínicas da pelagra são diversas. Os sintomas iniciais são geralmente fraqueza, fadiga geral, hiporexia, alterações do trato digestório e manifestações psíquicas. As alterações cutâneas características são, em geral, precedidas por sintomas digestivos. Observa-se o aparecimento da tríade clássica dos três “Ds”: diarreia, dermatite e demência, podendo evoluir para o quatro “D”, morte (death), se não for adequadamente tratada. Está presente principalmente nos países periféricos, especialmente naqueles em que os produtos de milho e o próprio milho constituem as fontes principais de alimento. 

Palavras chave: Pelagra. Dermatologia. Niacina.

A Pelagra é uma doença sistêmica resultante da deficiência de niacina (vitamina B3), sendo caracterizada clinicamente por quatro “Ds”: Diarreia, Dermatite, Demência e, se não tratada, morte (Death). As alterações cutâneas características são, em geral, precedidas por sintomas digestivos. De acordo com Rille, “a pelagra começa no estômago”.

Gasper Casal foi o primeiro a descrever a doença em 1762, denominando-a mal de la rose, pelo fato de todos os pacientes afetados terem apresentado erupções avermelhadas típicas e brilhantes no dorso das mãos e dos pés. As lesões de pele presentes no pescoço são conhecidas como "colar de Casal". Ele observou que os pacientes acometidos pela doença eram todos pobres, raramente comiam carne fresca e viviam principalmente de milho. Antes de Casal, as alterações de pele eram conhecidas como doença de Hiob, estigmas de São Francisco de Assis ou mesmo Alpino, na Itália. A palavra “pelagra” significa “pele que é áspera” no vernáculo italiano, referindo-se ao espessamento que ocorre na pele das pessoas acometidas pela doença.

Durante quase dois séculos a pelagra permaneceu endêmica entre os camponeses no sul da Europa até ser reconhecida nos Estados Unidos. Apenas em 1914 os cientistas passaram a sugerir uma deficiência nutricional na dieta como sendo causadora da pelagra, relacionando-a também com a língua preta (condição análoga à doença) encontrada em cães. Foi descoberto em 1937 que o ácido nicotínico era capaz de curar a "língua preta". O primeiro relato feito nos Estados Unidos data de 1902.

Na Europa, a pelagra apresentou maior incidência na região do Mediterrâneo e após cerca de duas décadas, ocorreu de forma epidêmica no sul-americano. Os fatores de risco mais frequentes foram a pobreza e o consumo de milho. Nas primeiras décadas do século XX, Joseph Goldberger investigou uma epidemia de pelagra nos Estados Unidos, esclarecendo definitivamente a verdadeira causa da doença como sendo decorrente de uma deficiência nutricional. Em 1926, Goldberg definiu a nicotinamida como sendo um fator preventivo para a Pelagra. A epidemia no sul dos EUA custou milhares de vidas mas finalmente foi superada com medidas governamentais de implementação de vitamina B na dieta.

Entendida como o estágio final da deficiência em niacina ou vitamina B3, uma vitamina hidrossolúvel, a pelagra pode ser divida em dois tipos distintos:
1) Primária, resultante da ingesta inadequada do ácido nicotínico e/ou triptofano na dieta; e 2) Secundária, que ocorre quando existe quantidade adequada de niacina na dieta mas a sua absorção e/ou processamento é prejudicado por outras condições, como alcoolismo crônico, cirrose hepática, diarreia prolongada, tratamento dialítico crônico, colite crônica, colite ulcerativa, tuberculose do trato digestório, neoplasia, após cirurgia bariátrica e síndrome de Hartnup (erro inato do metabolismo do triptofano).

Além disso, o uso de medicamentos como a isoniazida e o 5-fluorouracil também podem causar os sintomas da pelagra. Esta doença pode também se desenvolver após dieta de exclusão em pacientes com dermatite atópica e suas características clínica e histológicas podem se confundir com a necrose epidérmica.

Apesar de se ter poucos dados sobre a incidência da pelagra no mundo, sabe-se que ela ocorre principalmente nos países periféricos, especialmente naqueles em que os produtos de milho e o próprio milho constituem as fontes principais de alimento. Também apresenta maior prevalência nas populações com dieta deficiente em niacina e/ou triptofano.

Com relação à mortalidade, sabe-se que a pelagra não tratada resulta em morte por insuficiência múltipla de órgãos. A morbidade, por sua vez, está relacionada aos seus efeitos tóxicos sobre múltiplos órgãos envolvidos. A presença de dermatite pruriginosa é comum na faze aguda, embora alguns pacientes sejam assintomáticos. A hiperpigmentação da pele também pode ocorrer. Dentre os efeitos sistêmicos, deve-se destacar a apatia, mal-estar e astenia. O envolvimento do trato digestório leva a um estado de má absorção, podendo também estar presentes manifestações neurológicas como ansiedade, delírios, alucinações, estupor e depressão.

Não há relatos de predileção por raça ou sexo. O único fator de risco conhecido é a privação alimentar de niacina. Está presente tipicamente em pacientes adultos, sendo rara sua incidência em crianças. Como a deficiência de niacina afeta funções celulares em múltiplos órgãos e tecidos, as manifestações clínicas da pelagra são diversas. A seguir serão descritas suas principais manifestações.

A pelagra apresenta-se com sintomas iniciais de cansaço, fraqueza, hiporexia, alterações do trato digestório e sofrimento psíquico/emocional (irrascividade, depressão, ansiedade, por exemplo). As alterações cutâneas características são, em geral, precedidas por sintomas digestivos. Observa-se o aparecimento da tríade clássica de diarreia, dermatite e demência. O diagnóstico torna-se difícil na ausência dos sintomas cutâneos. As lesões de pele ou “pellagrodermas” costumam ser dolorosas. Pode ocorrer sensação de queimação, cefaleia e astenia.

A começar pelas manifestações cutâneas que, inicialmente (fase aguda), assemelham-se a uma queimadura solar. A pele torna-se avermelhada, podendo desenvolver bolhas que normalmente esfoliam, deixando áreas com lesão epitelial semelhante a queimaduras. As lesões desaparecem com o tempo, permanecendo uma coloração vermelho-escura (quase marrom) no local, tendendo a exacerbar após re-exposição solar.

A erupção geralmente inicia com edema e alterações exsudativas, como uma dermatite aguda, evoluindo para um eritema no dorso das mãos com ardor e prurido. Alterações vasomotoras de cianose, palidez, sudorese profusa e sensação de frescor podem estar associadas. O eritema inicial pode mudar para uma cor marrom e a erupção costuma ser simétrica. As bolhas podem surgir vários dias após o aparecimento do eritema, coalescer e romper. Vermelhidão e descamação superficial surgem nas áreas expostas ao sol, calor, pressão ou mesmo fricção.

Num segundo momento, a dermatose torna-se dura, áspera, quebradiça e preta. O paciente apresenta um espessamento da pele que apresenta-se seca, hiperceratótica, escamosa, apergaminhada e com tonalidade marrom-amarelada.

Quando o estado de deficiência é grave, a pele torna-se progressivamente mais seca, rachada e coberta por escamas e crostas escuras, resultantes de hemorragias. As bolhas estão presentes quando a pelagra reincide no mesmo local (pênfigo pellagrosus), apresentando linfócitos, leucócitos segmentados e histiócitos. Eventualmente pode-se observar a presença de pústulas, crostas e fissuras profundas.

No que se refere à localização, a pelagra afeta mais comumente a superfície dorsal das mãos, face, pescoço, pés e braços, sendo raro o acometimento de outros locais. Cerca de 77 a 97% dos casos ocorrem no dorso das mãos. As lesões podem se estender no braço, em forma de luva, “luva de pelagra”. Podem-se desenvolver fissuras dolorosas nas palmas das mãos e dedos.

Na face, a dermatite tende a acompanhar a distribuição do V par de nervo craniano (nervo trigêmeo), associando-se a hiperpigmentação. É frequente a presença de uma erupção simétrica e em borboleta, semelhante a encontrada no lúpus eritematoso sistêmico (LES). As lesões faciais nunca aparecem de forma isolada, associando-se sempre a lesões nas mãos e em outros locais.

O "colar de Casal", erupção característica bem marginada na frente do pescoço, afeta homens, mulheres e crianças e é sempre acompanhado de dermatites características em outros lugares. As lesões nas plantas dos pés e palmas das mãos apresentam-se amareladas, secas, ásperas e descamativas. Em crianças, são frequentemente eritematosas e acidentadas.

Os ombros, antebraços, joelhos e cotovelos podem ser ocasionalmente afetados. Ceratoconjuntivite e queratomalácia podem eventualmente ocorrer. Cerca de um terço dos pacientes apresentam lesões nos lábios, língua e mucosa oral. As alterações típicas da língua e mucosa incluem inflamação, edema, hipertrofia da língua, presença de pseudomembranas, erosões e úlceras, evoluindo posteriormente para atrofia.

Outros possíveis achados incluem queilose, aftas, estomatite angular, sangramento gengival, inflamação dos lábios que se tornam ásperos, doloridos e brilhantes. Os distúrbios no trato GI podem causar hiporexia, náusea, vômitos, hipersialorréia, desconforto e dor abdominal. Aproximadamente 50% dos pacientes apresentam diarreia, gastrite, acloridria e diminuição de enzimas duodenais. Exames radiológicos podem demonstrar atrofia da mucosa gástrica.

No que diz respeito às manifestações neuropsiquiátricas, podem-se observar ainda cefaleia, irritabilidade, diminuição da concentração, ansiedade, alucinações, delírios, torpor, apatia, agitação psicomotora, fotofobia, tremor, ataxia e paresia.

Ocasionalmente podem ocorrer neurites, mielites e sintomas graves do sistema nervoso central. Com a progressão da doença, os pacientes tornam-se desorientados, confusos e delirantes, podendo evoluir para um estado de torpor, coma e até mesmo morte. Deve-se fazer diagnóstico diferencial com outras patologias, como dermatite atópica, erupção por drogas, doença de Hartnup, LES, pênfigo vulgar, pênfigo induzido por medicamentos e porfiria cutânea tardia.

A observação dos sinais e sintomas descritos associados a uma resposta terapêutica à niacina estabelece o diagnóstico de pelagra. Outros exames como, por exemplo, baixa niacina no soro, triptofano, níveis de NAD e NADP, baixo nível de N-metilnicotinamida piridona podem ser úteis na confirmação do diagnóstico. A pelagra apresenta excelente prognóstico quando diagnosticada e tratada de forma adequada.

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Imagem: nejm.org