18 de junho de 2020

Estigma e Discriminação na Atenção à Saúde: I Encontro Síncrono da Turma EDAS


Por Rilva Lopes de Sousa Muñoz

Hoje, na nossa primeira telerreunião pelo Google Meet no Curso Livre "Estigma e Discriminação na Atenção à Saúde", do semestre suplementar 2020.3 na Universidade Federal da Paraíba, o principal tópico de discussão foi o enquadramento conceitual de estigma e discriminação, confrontando-se com o relato de experiências dos estudantes associadas ao grande problema social das ações discriminatórias.
Os principais objetivos da discussão foram destacar questões relativas a estigma e discriminação em diferentes contextos, sobretudo na atenção à saúde, e sob diferentes perspectivas, assim como relatar vivências e opiniões sobre estigma e discriminação, por parte dos alunos do curso, com moderação e feedbacks das professoras Rilva e Lílian.
Antes de começar a discussão temática, a moderadora Profa. Rilva fez uma breve explanação sobre o "Dia Mundial de Zero Discriminação". Este dia é celebrado globalmente em 1º de março, representando uma oportunidade para destacar como todas as pessoas podem fazer parte da transformação e se posicionar em favor de uma sociedade mais justa. Esta é uma campanha das Nações Unidas.
O Secretário-geral das Nações Unidas afirmou que a discriminação é uma violação dos direitos humanos e o chefe da UNAIDS/ONU disse que “livrar o planeta do estigma e da discriminação não é uma opção, é um dever”. 
O primeiro "Dia Mundial de Zero Discriminação" foi celebrado em 2014 pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS). A borboleta foi escolhida como símbolo da campanha por representar transformação.
A Profa. Lílian destacou os conceitos de estigma, preconceito e discriminação, lembrando que o estigma está no âmbito do pensamento (cognição), o preconceito está ligado à dimensão afetiva (emoção) e a discriminação, na ação, no comportamento. A Profa. Lílian mencionou ainda um fato recente ocorrido em uma mídia social em que uma mulher branca que tem um perfil famoso no Instagram afirmou em vídeo que “o racismo sempre vai existir enquanto a maioria dos crimes for causado pela população negra” e que “o preconceito é algo natural, um instinto de defesa”. Este fato midiático foi correlacionado às leituras que temos feito nos tópicos 1 e 2 do nosso curso.
Em seguida, C. referiu um problema pouco aventado na mídia e nas discussões da sociedade ou da academia no contexto dessa temática, o de que muitas minorias raciais e étnicas são menos propensas que a população branca a receber transplantes de órgãos, assim como têm cuidados médicos de pior qualidade. Ele comentou também que as disparidades raciais tornaram-se centrais também na discussão atual sobre a pandemia de COvID-19. Muitas populações correm um risco maior de desenvolver a infecção e de morrer porque os determinantes sociais subjacentes às condições de saúde que afetam essas populações levam à maior vulnerabilidade ​​ao vírus. Esses determinantes incluem, entre outros, o menor acesso à saúde, baixo poder econômico, más condições de moradia e baixa disponibilidade de recursos. A Profa. Rilva mencionou que havia lido um artigo recentemente abordando a questão da maior vulnerabilidade de minorias à COVID-19 (segue a referência do artigo após este texto). Neste artigo, mostra-se que os negros representam 13% da população dos EUA e, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), eles respondem por 28% dos casos de  COVID-19 e 33% das internações pela doença.
Por sua vez, N. destacou em sua leitura do primeiro capítulo do livro de Erving Goffman ("Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada") trechos relacionados com a comparação da adolescente grávida que quebra padrões familiares, em relação a uma mulher de 35 anos à qual a sociedade impõe o estigma associado ao fato de não ter tido filhos. A maternidade na adolescência está relacionada preconceituosamente à irresponsabilidade e as jovens mães relatam experiências de estigma e discriminação. O estigma pode impedir as mães adolescentes de acessar serviços de apoio durante e após a gravidez. Isso coloca em questão a hipótese de que estigma estaria relacionado a uma má evolução da gravidez na adolescência. Tal estigma não deve, portanto, ser "aplaudido" como uma maneira de reduzir a ocorrência de gravidez na adolescência. 
A gravidez na adolescência levou ao desenvolvimento de esforços de prevenção  nos EUA. Embora os programas de prevenção de gravidez entre adolescentes tenham contribuído para a redução da gravidez nesta fase precoce nos EUA, poucos estudos exploraram os danos por estigmatização que esses programas podem impor a adolescentes grávidas. No entanto, supõe-se que os referidos programas criam e perpetuam estereótipos da maternidade adolescente por meio da ênfase excessiva nos efeitos adversos da gravidez e maternidade na adolescência, assim como na representação de mães adolescentes como “mães ruins”. As questões legais decorrentes de gestações de menores de idade acaba encobrindo o direito de autodeterminação da adolescente, assim como o direito à confidencialidade, não havendo uma discussão maior sobre o impacto da Lei de Direitos Humanos sobre essa questão. Assim, a maternidade na adolescência não é uma questão única, mas um fenômeno que está profundamente enredado com desafios sociais contemporâneos de raça/cor, pobreza e estigmatização, pois geralmente há intersecção destes outros tipos de preconceito e discriminação, considerando-se que a gravidez na adolescência é mais frequente entre jovens pobres e de grupos étnicos minoritários.
N. apontou ainda a contradição entre o estigma que existe em relação à adolescente grávida e, por outro lado, também à idade materna avançada, que é considerada como um fator gerador de risco para a gestação, pois gestantes com idade superior a 35 anos são tidas como tardias, sendo mais suscetíveis ao desenvolvimento de complicações durante a gravidez.
Em seguida, J. disse que era policial militar e comentou que a ação policial é vista como pautada na omissão, preconceito e violência, associados ao exercício de poder e instrumento de preconceito e discriminação racial, em razão da dominação de um grupo sobre outro e reprodução social dessa exploração. Ele mencionou que um colega de corporação que cursa um programa de doutorado, e que expressa sua identidade profissional como policial, identificando-se com o Estado, o corporativismo da polícia, sua rigidez e até práticas de violência contra minorias, e ao mesmo tempo, sente sua outra identidade, como doutorando, e percebe o antagonismo de suas duas identidades. Como agente da polícia, sua identidade profissional que remete ao “nós” em contraposição ao “eles”, os diferentes ou minorias desviantes e estigmatizadas. Há um conflito nesse processo em um misto de pertencimento e estranhamento. Como parte do lado militarizado, ele, o colega de J., pode sofrer esse conflito, pois convive com duas realidades distintas, uma dentro dos quartéis, e outra de fora. O de dentro do quartel pode ter que assumir o estereótipo de policial militar que classifica as pessoas com base em sua origem social e étnica. Nesse sentido, a Profa. Lílian comentou o estereótipo da polícia como corporação que comete excessos e, dentro do grupo, aquele agente que resiste ou não compactua com esse comportamento, pode ser discriminado pelos próprios pares. J. complementou, afirmando que na polícia militar, a heteronormatividade é hegemônica e tende a discriminar os agentes que têm orientação homossexual. A Profa. Rilva destacou que  o policial passa a ser um agente da discriminação e ao mesmo tempo, é alvo desta e, que muitas vezes, esconde que é policial militar em sua própria comunidade urbana, onde reside com a família.
MF compartilhou sua vivência ao participar de um projeto de pesquisa em um centro de reabilitação de pessoas com deficiência, salientando que observa nesta instituição manifestações de estigma e discriminação em relação aos usuários. Ela refletiu também que é flagrante o reducionismo contido na prática médica, que é fragmentada, o que não é compatível com o modelo social da deficiência. A Profa. Rilva corroborou esta assertiva, referindo que o modelo biomédico ainda é hegemônico desde o século XIX, e que demorará a ser substituído pelo modelo biopsicossocial ou pelo modelo clínico centrado na pessoa.
Rebecka falou de seu trabalho de extensão em um centro de atenção psicossocial e salientou a importância do estigma, preconceito e discriminação relacionados às pessoas com transtornos mentais. Tanto o estigma público - a reação que a população em geral tem a pessoas com doenças mentais - quanto o auto-estigma - atitude preconceituosa que as pessoas com doença mental dirige contra si mesmas - são um dos problemas enfrentados pelas pessoas com transtornos mentais, com efeitos prejudiciais sobre elas pessoas, alvos de discriminação generalizada, que resulta em exacerbação de sintomas, má adesão ao tratamento e maus resultados deste.
A. disse que embora seja estudante de Sociologia, considerou que o trabalho de Goffman às vezes parecia difícil de ler, pela própria linguagem usada na sua obra. Ele também pontuou uma questão que raramente é abordada, tanto na literatura acadêmica quanto na imprensa em geral, que é o da doação de sangue por pessoas LGBT, pois o Ministério da Saúde ainda tratava até recentemente como “inaptos temporários” à doação de sangue os homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes. Para ativistas LGBT, estas normas são discriminatórias; para representantes do governo, visam à proteção dos receptores. Porém, por maioria de votos, recentemente (abril de 2020), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais essas normas.
A. relatou ainda que teve um companheiro que chegou a afirmar que se sentia uma “pessoa estragada”, o que o fez pensar que o estigma contra pessoas homossexuais chegava a constituir um problema de saúde pública no contexto de repercussões altamente danosas observadas nas pessoas que são alvo do estigma. Ele lembrou que o enredo do filme “Extraordinário”, que conta as dificuldades de um menino com uma síndrome genética, visto como “diferente”, que enfrenta estigma, preconceito e discriminação. Ainda na linha de filmes com temáticas compatíveis com a questão do estigma e da discriminação, citou também o filme “Família Bélier”, uma família em que todos são surdos - exceto uma adolescente, de quem toda a família depende.
Após 1 hora e 30 minutos, a telerreunião foi encerrada, tendo contado com a presença de 14 alunos do curso. A maioria dos participantes considerou produtivo o formato adotado para o primeiro encontro síncrono da turma. A Profa. Rilva queixou-se da presença de menor número de alunos que o esperado no universo de 23, o que representou 60,8% da turma.

Referências
Center for Disease Control and Prevention.  COVID-19 in Racial and Ethnic Minority Groups. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/need-extra-precautions/racial-ethnic-minorities.html