20 de setembro de 2022

ESTIGMA POR TRANSTORNOS MENTAIS: A REVELAÇÃO DO DIAGNÓSTICO MUDA TUDO?

Imagens da nossa sala de aula, onde graduandos da turma 114 de Medicina trabalham crítico-reflexivamente no Módulo de "Diversidade Étnica e Cultural na Medicina"

Muito mais que qualquer outro tipo de agravo à saúde, as pessoas com transtornos de saúde mental (PTSM) estão sujeitas a julgamentos negativos e estigmatização. Esta estigmatização em relação às PTSM ainda é um importante problema social e de saúde. A população em geral é, em grande parte, ignorante sobre este problema. O medo às PTSM continua prevalecendo. Embora já não se prendam, queimem ou matem doentes psiquiátricos como na Idade Média ou na Alemanha nazista, os padrões e atitudes sociais não são dignos dos modernos entendimentos sobre transtornos mentais. A discriminação estrutural às PTSM ainda é generalizada, seja na legislação, nos esforços de reabilitação ou no contexto social em geral.

Portanto, estigma, preconceito e discriminação contra PTSM, sejam sutis ou óbvios, não importa a magnitude, podem causar danos a elas. 

PTSM são marginalizadas e discriminadas de várias maneiras, e entender como isso ocorre e como lidar, pode ajudar a reduzir o estigma.

Há várias dimensões do estigma. O estigma público envolve as atitudes negativas ou discriminatórias que os outros têm sobre as PTSM. O autoestigma refere-se às atitudes negativas, incluindo a vergonha internalizada, que as PTSM têm sobre sua própria condição. Por outro lado, o estigma institucional  é mais sistêmico, envolvendo políticas de governo e organizações privadas que, intencionalmente ou não, limitam as oportunidades para pessoas com doença mental. Exemplos incluem menor financiamento para pesquisa de doenças mentais ou menos serviços de saúde mental em relação a outros cuidados de saúde. É importante destacar que o estigma não afeta diretamente apenas as PTSM, mas também os seus familiares.

A discussão foi iniciada por Gerrimarque, que lembrou do tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020 foi "O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”, sob a forma dissertativo-argumentativa, o que, coincidentemente, correspondeu ao processo seletivo para o ingresso da sua turma no curso de graduação em Medicina na UFPB.

Gerrimarque acrescentou que, muitas vezes, os próprios profissionais da saúde não acreditam (no sentido de dar credibilidade) que as pessoas que apresentam diagnóstico de transtorno de saúde mental possam estar realmente em sofrimento e doentes. Muitos profissionais costumam ter uma visão de que as PTSM são pessoas de “personalidade fraca”, e não doentes que necessitam de ajuda. Corroborando e ampliando o pensamento compartilhado por Gerrimarque, sabe-se que a doença mental está associada a piores resultados na terapêutica para doenças físicas concomitantes.

Nesse sentido, Leandro destacou a falta de capacitação dos profissionais de saúde, o que compromete a inclusão  das PTSM nos serviços de saúde, pontuando o aspecto fundamental de que elas não têm considerada a possibilidade que estejam com uma doença física simultaneamente. Colocando sua fala no caso que foi apresentado para discussão, Leandro afirmou que “a revelação [do diagnóstico de doença mental] muda tudo”. 

Azevedo salientou que é preciso estudar bem os antecedentes do paciente, lembrando das aulas de Semiologia Médica às quais assistiu. É importante saber como tem evoluído a PTSM, pois ela pode estar funcionalmente bem e equilibrada, como foi descrito no caso do relato posto à discussão. Contudo, muitas vezes, o diagnóstico precede a pessoa na visão de muitos médicos.

A ocorrência de estereotipagem, preconceito e discriminação nas relações interpessoais no contexto de situações de saúde é denominada Estigma Relacionado à Saúde. Esse estigma pode levar o paciente a perceber um tratamento de qualidade inferior devido ao estigma que carrega.

Sérgio afirmou que atendimentos médicos que cursam com preconceitos podem causar mais sofrimento ao paciente que a própria doença mental.  A título de esclarecimento, o estigma pode fazer as pessoas se sentirem culpadas, envergonhadas e estressadas, além de, muitas vezes, internalizar o estigma, o que costuma acarretar o autoisolamento para evitar as manifestações de discriminação. Nesse sentido, Sérgio colocou um exemplo crítico e temerário da vida real, noticiado em agosto passado em Cuiabá, Mato Grosso, quando um homem com diagnóstico de esquizofrenia atacou violentamente uma médica e uma agente comunitária de saúde que trabalhavam na Estratégia Saúde da Família, onde, segundo ele (o paciente), fora mal atendido. 

Sérgio ainda destacou que ao longo da história, os loucos foram vistos de diversas maneiras, citando, como exemplo, a visão de que eram figuras intelectualmente geniais na Antiguidade. Surgiu, nesse sentido, o exemplo de Diógenes, que se acreditava ser absolutamente louco, mas também era tido como um dos filósofos mais respeitados do século IV a. C. Na Idade Média, os loucos eram vistos como  párias da sociedade e abandonados à própria sorte fora das cidades feudais, ou então como feiticeiros ou vítimas de possessão demoníaca. A figura do louco também aparece como alguém descontrolado e perigoso, concepção que deu origem à psiquiatria, no século XIX. O eminente filósofo francês Michel Foucault compreendeu bem os modos de entender e lidar com a loucura ao longo da história em sua obra “História da Loucura”. Thiago Vicente salientou que, independentemente do período histórico, a exclusão generalizada, em todos os contextos sociais, afeta fortemente as PTSM.  

Gerrimarque pensou na relação do Estado com o controle histórico de pessoas com doença mental. O Estado pode agir por meio da Biomedicina, como por exemplo, a partir dos trabalhos de Cesare Lombroso, um médico italiano da segunda metade do século XIX,  e que elaborou sua teoria de que criminalidade, loucura e gênio eram a condição psicobiológica, constituindo uma expressão de degeneração que afetava especialmente os criminosos, em particular o “delinquente nato”, cujo desenvolvimento humano havia parado em um estágio inicial.

Nessa mesma linha de pensamento, Abraão lembrou da chamada frenologia, uma pseudociência, há muito desacreditada, em que o estudo do crânio predizia características do comportamento. A frenologia nunca foi universalmente aceita, mas teve um profundo impacto na história da psiquiatria, que surgiu na Idade Moderna, quando o “louco” passou a ser considerado “doente mental”. 

Werber fez, então, uma pergunta retórica: “Alguém aqui já foi chamado de louco (a)?” Parece que todos já haviam (havíamos) sido, inclusive esta relatora. Mas se a linguagem é poderosa, e esta palavra “louco (a)'' não seria estigmatizante para PTSM ou poderia perpetuar o estigma em relação a elas?  Na verdade, eu (relatora) notei pela primeira vez que “louco (a)” era uma palavra quase onipresente nas conversas coloquiais de todo mundo. Na realidade, loucos não são as pessoas que recebem diagnóstico de esquizofrenia ou outros transtornos psicóticos? Pessoas com tais agravos à saúde não são consideradas irracionais ou incapazes de tomar decisões?... Sendo  “louco (a)” uma palavra genérica que não tem apenas um significado, no dia a dia, passou a ser, muitas vezes, uma palavra banalizada nas brincadeiras. É uma palavrinha “brincalhona”, mas até que ponto, se é, ao mesmo tempo, carregada de significados?... Então, pode-se perceber o quão amplamente se usa a palavra “louco” em conversas casuais – em todos os tipos de contextos diferentes, por todos os tipos de razões diferentes. Como acontece com outras partes da linguagem, “louco (a)” tem um passado complicado e um estigma associado a ela e, assim, usar essa palavra pode ser uma microagressão às pessoas que vivem com uma doença mental. Claramente, a palavra tem uma conotação negativa para todos nós e, a partir da pergunta feita por Werber, pode-se refletir que o estigma implícito é corrente no cotidiano. Isso é algo de flagrante implicação porque um em cada cinco indivíduos experimenta o aparecimento de problemas de saúde mental antes de atingir a idade adulta. Assim, ele comentou que quando se tem o diagnóstico de um transtorno psicótico, ou “loucura”, esta palavra é usada para anular a personalidade da pessoa,  que tem perda do contato com a realidade. 

A doença mental nunca é culpa de uma pessoa. Mas chamar alguém de “louco” tem conotações negativas que sugerem o contrário: como se a declaração indicasse que há algo de errado com eles, o que coloca a culpa diretamente no indivíduo. Sérgio falou também sobre a culpabilização de pessoas com dependência de álcool e drogas ilícitas.

Pode ser especialmente doloroso para indivíduos com uma doença mental serem chamados de “loucos”. As pessoas que vivem com uma doença mental passam por lutas invisíveis todos os dias. Adicionar vergonha à mistura de microagressões que elas vivenciam pode tornar o transtorno maior. As PTSM podem internalizar o estigma e se sentirem piores consigo mesmas. Helica mencionou, nesse sentido, uma experiência vivida como estudante em estágio no hospital psiquiátrico público da cidade, o Hospital Juliano Moreira,  onde uma paciente tida como agressiva em determinando momento da institucionalização, depois de ser incluída nos grupos terapêuticos, que já se encontrava clinicamente bem, ela passou a praticar ações de psicoeducação em relação aos demais pacientes internados, ajudando-os no difícil percurso da superação.

Esta moderadora-relatora da discussão em tela compartilhou (em primeira pessoa), então, sua própria experiência, com a palavra “louca”, afirmando que cada indivíduo já deve ter se deparado com esse adjetivo ao longo de sua vida que, no seu caso, foi sua experiência pessoal como o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Este é um tipo específico de transtorno de ansiedade caracterizado por pensamentos, ideias ou sensações indesejáveis ​​e recorrentes (obsessões) e/ou comportamentos que levam as pessoas a fazer algo repetidamente (compulsões) em busca de reduzir a ansiedade. Apesar do TOC, por meio de tratamento medicamentoso e de terapia cognitivo-comportamental, cumpri muito bem minha graduação e pós-graduação, me sentindo melhor preparada para lidar com os sintomas que, outrora, para uma jovem estudante de medicina, pareciam aterradores. Por isso, foi um diagnóstico que gostaria que tivesse sido feito mais precocemente na minha vida estudantil. 

Então, passou-se a falar do reducionismo hegemônico na profissão médica, da medicalização excessiva na subárea de saúde mental, em que cada especialista só enfoca de forma a reduzir a clínica à sua própria especialidade, embora pudesse desenvolver uma abordagem clínica mais integradora e holística, ampliando sua visão para outros problemas simples fora de sua expertise.

José Felipe voltou especificamente ao caso clínico que estava sendo discutido, a propósito da recusa do médico em atender à paciente que tinha diagnóstico de transtorno bipolar. Por outro lado, ele questionou por que esses pacientes não eram efetivamente incluídos nos hospitais gerais que tivessem alas de atendimento a PTSM, citando que 25% da União Europeia não têm programas nessa área, o que não se restringe à classe médica (não capturei a fonte dessa estatística).

A título de esclarecimento no presente relatório, os médicos precisam tentar ser menos superespecialistas, ao praticar uma fragmentação do organismo humano, porém, na prática, dificilmente fornecerão, na maior parte dos casos, tratamentos fora do seu âmbito de prática e experiência. Como psiquiatra, por exemplo, um médico tem  experiência no tratamento na sua especialidade e seus fatores de risco, mas geralmente não costuma prescrever tratamento a doentes com condições não psiquiátricas. No caso em estudo, ocorreu o contrário: médicos especialistas de outras áreas e um odontólogo se recusaram a atender uma demanda clínica de sua especialidade porque a paciente tinha diagnóstico de transtorno bipolar.  Durante a evolução da relação médico-paciente ao longo da história, o pêndulo da ética médica oscilou de um foco no paternalismo beneficente (o médico é quem sabe e quem decide) para um foco na autonomia (o paciente sabe melhor o que seria mais adequado para ele, uma vez tendo as informações necessárias). Penso eu (moderadora-relatora da discussão) que o caminho certo está no meio termo, no equilíbrio entre os extremos.

Sérgio perguntou, então, “onde estão os clínicos gerais”? Ele comentou a situação insatisfatória e geradora de frustração e confusão para um paciente que é atendido por um nefrologista por cálculo renal, por exemplo, se ele, o paciente, lhe pedisse medicação para uma dor aguda associada a uma amigdalite, e o médico se recusasse a fornecer esse tratamento porque estaria fora da sua área de prática ou especialização. Nesse caso, o médico costuma apenas aconselhar o paciente sobre a melhor forma de proceder, encaminhá-lo a um colega otorrinolaringologista ou a um clínico generalista, se não se sentir apto a atendê-lo em relação à sua queixa de amigdalite aguda. 

Embora isso possa ser um inconveniente para o paciente, o fato de fornecer tratamento fora de sua especialidade sem estar atualizado com as diretrizes e padrões de prática atuais pode apresentar um potencial real de dano. Uma prescrição do antibiótico errado, por exemplo, pode atrasar um tratamento certo e colocar o paciente em maior risco de complicações infecciosas, o que violaria o dever como médico de não causar danos (primum non nocere). Essa questão foi cogitada também em discussão prévia, no tópico de aula sobre subjetividade, em que se questionou quem deveria atender um paciente transgênero mulher ainda em fase de transição, antes da cirurgia de redesignação de sexo, o especialista em ginecologia ou em urologia? (esta questão não ficou suficientemente clara na discussão da aula 4 - ver link para esclarecimento posterior).

Raphael comentou um aspecto interessante, com viés culturalmente capacitista, compartilhando sua própria vivência por parte de profissional médico; ao receber diagnóstico de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), ouviu  de uma médica, a quem buscou como prescritora - pois o profissional que o acompanhava não se encontrava na mesma cidade -, e se deparou com a afirmação de que ela considerava melhor que ele ficasse sem o tratamento medicamentoso indicado uma vez que, na sua visão profissional, seria preferível que fosse um aluno medíocre sem tomar remédios que um aluno com bom desempenho acadêmico usando medicamentos.

A título de esclarecimento, novamente, abrem-se parênteses aqui: o TDAH é uma das dificuldades de aprendizagem mais comuns identificadas em estudantes no ensino superior e está negativamente associado a uma série de medidas de desempenho acadêmico. Como uma das formas modais de abordar as queixas comportamentais relacionados ao TDAH é por meio do tratamento medicamentoso, embora o uso desses medicamentos não seja incontroverso, a terapia medicamentosa tem demonstrado consistentemente tratar os sintomas centrais de estudantes com TDAH moderado a grave. Se este afeta negativamente os resultados educacionais, o tratamento bem-sucedido pode reduzir as consequências acadêmicas adversas e, portanto, a manifestação aversiva da profissional pode ser classificada como capacitista. Aqui, não se trata de “primum non nocere”, mas sim, de beneficência, pois questões éticas na patologização de variações normais no comportamento e funcionamento se aplicam quando não há diagnóstico criterioso da condição.

Manoel resgatou o tratado “Doença como Metáfora” (1978), de Susan Sontag, uma escritora que expressou sua posição contra a possibilidade de extrair qualquer resultado estético da experiência de certas doenças, como o câncer de mama, que ela mesma vivenciou, e também o estigma associado à doença. Para ela, a doença torna-se adjetivo porque quando se diz que algo é semelhante a uma doença, significa que é “feio”, e ​​no discurso social e político, representa desordem, desvio. 

Por meio dos conceitos de biopoder e biopolítica, Michel Foucault desenvolveu uma argumentação de que uma forma de governança especificamente moderna concebe a vida biológica como um recurso, e que administra, tanto no nível dos corpos individuais quanto no nível das populações, como controle social. Esse fenômeno chamado "biopoder" foi exercido pelas instituições do Estado moderno, que passaram a exercer um controle social por meio da medicina e da economia. Essas formas de poder/saber eram e estão voltadas ao controle de corpos na maquinaria de produção, atuando como fatores de segregação e hierarquização, articulando racionalidades para distinguir entre formas de vida normais, válidas e valiosas, em relação àquelas que devem ser negligenciadas. Leandro encontrou o termo que seria a interseção entre o que se considera "estado de doença" e "controle social", e que legitima o próprio status de doente para a sociedade, que é o comprometimento da produtividade econômica. Foucault teorizou sobre a negligência ativa de aspectos importantes da vida humana para priorizar a maximização daqueles fatores que serviam à economia capitalista e, por meio dela, ao próprio Estado. No decorrer do século XX, então, a saúde foi progressivamente politizada no contexto de vários movimentos emancipatórios, e surgiu o “direito de estar doente” e suas isenções morais, captadas pelo pesquisador Talcott Parsons por meio do conceito sociológico de "comportamento de doente”. A teoria do papel do doente, conforme descrita pelo pesquisador Talcott Parsons, é uma maneira de explicar os direitos e responsabilidades especiais das pessoas doentes. Parsons via o “papel de doente” como uma forma de desvio, ou uma forma de ir contra as expectativas da sociedade, porque uma pessoa doente apresenta comportamentos que diferem da norma. A contribuição do conceito de Parsons à ideia de um papel de doente traz compreensão ao que representa a doença na sociedade. Nessa representação, a profissão médica passou a desempenhar um papel crucial como guardiã do direito de estar doente, cujo usufruto estava condicionado ao respeito à autoridade médica e à obediência às suas instruções, que seriam válidas e valorizadas porque estão baseadas na Ciência. 

Bianca rememorou a história familiar de uma parente de 19 anos na década de 1980, institucionalizada em um manicômio em uma cidade do interior do Ceará, onde sofreu abusos e diversos tipos de maus tratos, o que representa uma memória que a própria parente não consegue verbalizar hoje, depois de 40 anos. 

José Antônio salientou que, em geral, os médicos não acreditam na veracidade de queixas de dor crônica e incapacitante trazido pelos pacientes, em parte porque a dor é uma manifestação inteiramente subjetiva. Os pacientes que sofrem de dor crônica relatam que sua queixa não é devidamente acreditada e que, como resultado, não recebem a atenção e a ajuda que pensam que precisam e merecem. Para ele, não é apenas com um exame físico rigoroso que pode afastar um quadro patológico e descartar uma doença no paciente. O médico pode tratar as queixas do paciente como “frescura” e lhe dizer para voltar à casa porque não têm nada de anormal. Neste caso, pode-se dizer que o médico não tem noção da pessoa. Essa reflexão remete à discussão da aula anterior, sobre a subjetividade e a diversidade em saúde, abstraindo da dimensão puramente factual, objetiva, para uma dimensão experiencial, subjetiva, expressiva de valores pessoais, moralidades privadas, trajetórias individuais. 

Gerrimarque comentou, então, que a discussão avançou bastante no sentido das questões do encarceramento ou desencarceramento das pessoas ditas loucas, sobretudo a partir da Idade Moderna, em que se desenvolveram os hospícios ligados à criminalidade e que, depois evoluíram para manicômios.  Este foi o momento para lembrar que o advento da psicofarmacologia em meados do século XX foi uma revolução da Psiquiatria, e a descoberta e uso da clorpromazina levou ao “esvaziamento” dos hospitais psiquiátricos naquela época. Isso não significa que foi naquele momento que os manicômios acabaram completamente, pois há relatos de tratamentos precários e condições degradantes dos pacientes institucionalizados, o que também ocorreu no Brasil. Raphael mencionou o livro-reportagem "Holocausto Brasileiro", de Daniela Arbex, sobre o Hospital Colônia de Barbacena, que mostra de forma muito crua as condições aterradoras em que viviam os pacientes internados (para quem interessar possa*, vide resenha neste site - link ao final desta postagem).

Sérgio interveio colocando o desafio de uma família ter seu ente querido com esquizofrenia em um momento de crise psicótica em casa. A pressão global para a desinstitucionalização desses pacientes resultou em um aumento da responsabilidade pelo cuidado a ser prestado pela família e seus membros.

Novamente, a discussão voltou ao homicídio de uma agente de saúde relatado antes, em que os familiares ligaram para a polícia com o objetivo de conter o paciente com agitação psicomotora, tencionando passar a responsabilidade para o estado. Gerrimarque salientou o medo que os profissionais de saúde têm em relação ao perigo representado pelo possível comportamento violento de uma PTSM em crise. Contudo, apesar do caso de homicídio referido anteriormente, aceita-se que as pessoas que vivem com uma doença mental e recebem tratamento eficaz não são mais violentas que qualquer outra pessoa na comunidade. As pessoas que vivem com esquizofrenia são mais propensas a prejudicar a si mesmas do que a prejudicar os outros. A relação entre doença mental e violência é complexa. Pesquisas sugerem que há pouca relação entre doença mental e violência quando o uso de drogas ilícitas não está envolvido.

A violência é sempre inaceitável. Para prevenir a violência que pode estar associada a sintomas de doença mental, é importante incentivar e apoiar as pessoas para que tenham acesso a um tratamento eficaz o mais cedo possível. É importante entender que a doença mental não é uma escolha e pode ocorrer em qualquer pessoa.

A crença popular é de que as pessoas com doença mental são mais propensas a cometer atos de violência e agressão. A percepção pública de pacientes psiquiátricos como indivíduos perigosos está muitas vezes enraizada na representação de criminosos na mídia como indivíduos "loucos". Um grande corpo de evidências sugere o contrário.

A violência atrai a atenção nos meios de comunicação, no mundo do entretenimento, na política mundial e em inúmeros outros cenários. A violência no contexto da doença mental pode ser especialmente sensacionalista, o que só aprofunda o estigma que já permeia a vida das PTSM. Nesse sentido, João Max destacou essa associação entre doença mental com violência, e apontou como exemplo o popular filme “Coringa” (2019),  que retrata o personagem principal como uma pessoa com doença mental e que se torna extremamente violenta. Supõe-se que assistir ao filme pode acarretar níveis mais altos de preconceito em relação a pessoas com doenças mentais. Além disso, o Coringa pode exacerbar o autoestigma naqueles que têm um transtorno de saúde mental, levando a atrasos na busca de ajuda. Portanto, as representações midiáticas de pessoas com doença mental podem influenciar percepções e estigmas, pois são representações negativas, imprecisas ou violentas. 

Trata-se de um mito a ideia de que pessoas com problemas de saúde mental são mais violentas que as pessoas sem esse diagnóstico. A grande maioria das pessoas com problemas de saúde mental não é mais propensa a ser violenta do que qualquer outra pessoa sem diagnóstico psiquiátrico. A maioria das pessoas com doença mental não é violenta e apenas 3% a 5% dos atos violentos podem ser atribuídos a indivíduos que vivem com uma doença mental grave. De fato, pessoas com doenças mentais graves têm 10 vezes mais chances de serem vítimas de crimes violentos do que a população em geral. 

Thiago Raffi salientou a necessidade de acolhimento a PTSM que buscam serviços de pronto-socorro, onde chegam, muitas vezes, jovens com quadros de intensa ansiedade aguda e que recebem uma injeção de psicotrópico sedativo, e depois são liberados sem qualquer orientação de acompanhamento, eventos que podem, ao ocorrerem de forma reiterada, levar a quadros de dependência psicológica dos fármacos psicoativos. Marina complementou a reflexão sobre a situação mencionada por Thiago, afirmando que é preciso disseminar a cultura de que médicos devem informar e aconselhar os pacientes nesses casos, mesmo em serviços de urgência. Ela também compartilhou a ideia de que o ambiente em que as pessoas adoecem não é o mesmo em que elas se curam, e a funcionalidade da família é importante para a evolução da PTSM. 

José Victor lembrou, por sua vez, do caso de um jovem que é parente de um prestador de serviços conhecido, e que tem diagnóstico de esquizofrenia, que apresenta crises de automutilação, aparentemente não suicidas. Ele perguntou o que se poderia ser feito nesse caso. Os indivíduos com transtornos psicóticos apresentam alto risco de automutilação, que significa tentar machucar a si mesmo – ou pensar em se machucar –, o que é um sinal de sofrimento emocional. Essas emoções ​​podem se tornar mais intensas se uma pessoa continuar a usar a automutilação como mecanismo de enfrentamento. Há forte risco de automutilação (suicida e não suicida) em indivíduos com transtornos psicóticos. Entretanto, outras doenças também estão associadas à automutilação, incluindo transtorno de personalidade limítrofe, depressão, transtornos alimentares, ansiedade generalizada e transtorno do estresse pós-traumático. Aprender outras maneiras de tolerar a dor emocional tornará esse jovem mais forte em longo prazo, se tiver o apoio social necessário. 

É importante o apoio familiar e de amigos próximos a essa pessoa, além da avaliação, ou reavaliação, por um profissional de saúde mental, que vai ponderar a necessidade imediata de uso de medicamentos, além de psicoterapia, que é importante para qualquer plano. A sensibilidade para lidar com a angústia subjetiva e a desesperança desses pacientes é importante, uma vez que o desespero é conhecido por ser um fator de risco para suicídio em pacientes com esquizofrenia. Adriel ponderou a situação possível de que muitas vezes o profissional não consegue identificar uma rede de apoio para o paciente com quadros semelhantes a esse. A gestão do risco de suicídio em pacientes com esquizofrenia apresenta muitos desafios para os médicos em geral. Em comparação com a população geral, esses pacientes têm um risco 8,5 vezes maior de suicídio.

Helena chamou a atenção para o uso de exemplos de casos extremos para a discussão, como nesse da agressão e homicídio por parte de uma PTSM. Na realidade, esses casos de violência são esporádicos.  A agressão é um problema médico sério que pode colocar em risco tanto o paciente quanto o profissional de saúde. Embora seja comum ver o raciocínio crítico desenvolvido em discussões a partir de casos extremos para resolução de problemas, esses casos extremos precisam ser apontados como raros.

Para finalizar, Fernandes relembrou o relato que ele fez em aula anterior sobre uma paciente que administrou um ansiolítico que ela mesma usava para seu esposo idoso, sem indicação médica, ignorando que estava prejudicando seu marido por se tratar de uma administração irracional do fármaco psicoativo. Azevedo mencionou a importância do rapport (termo aprendido na Semiologia) para que haja uma boa interação com os usuários do sistema de saúde e que, a propósito, o Prof. Estácio havia dito que o médico tem que saber como comunicar más notícias no contexto clínico.

Apesar de a doença mental ser comum, as pessoas com esse transtorno muitas vezes mantêm seu diagnóstico em segredo diante do medo do estigma e da discriminação generalizados. Pessoas com doenças físicas geralmente são mais abertas para discutir suas doenças com familiares, amigos e até mesmo com estranhos virtuais que pessoas com doenças mentais. A doença mental é, muitas vezes, um segredo profundo e, às vezes, vergonhoso para quem a sofre.

As PTSM com quadros mais graves são temidas, e podem enfrentar discriminação em quase todos os aspectos de suas vidas, incluindo a obtenção de assistência médica adequada.

Na subárea da saúde mental, por causa do estigma, as pessoas com esse tipo de sofrimento são muitas vezes vistas e tratadas de forma diferente de outras doenças crônicas. O estigma afeta tudo, desde interações interpessoais até normas sociais e estruturas organizacionais, incluindo acesso ao tratamento e sua qualidade. Geralmente, o estigma leva a experiências sociais negativas, como isolamento, rejeição, marginalização e discriminação. Também foi relatado que o estigma afeta as famílias ou parentes dos pacientes, juntamente com os próprios profissionais que trabalham em ambientes de saúde mental. O estigma é fortemente influenciado por sistemas de valores culturais e contextuais que diferem ao longo do tempo e entre contextos, mas geralmente estão presentes e afetam as PTSM.


*A sinopse do livro de Daniela Arbex não é conteúdo de prova, mas sim, a reflexão resultante sobre os aspectos factuais relacionados.


**Link do complemento

***Link do texto citado: “A Narrativa de uma Dívida Histórica da Medicina e da Sociedade Brasileiras: Uma Sinopse Informativa” - disponível em: http://www.semioblog.website/2013/09/holocausto-brasileiro.html