26 de agosto de 2025

CAPACITISMO E SAÚDE: BARREIRAS INVISÍVEIS, CUIDADO VISÍVEL


Introdução

O capacitismo refere-se a atitudes, práticas e estruturas sociais que discriminam ou subestimam pessoas com deficiência, muitas vezes partindo da ideia de que elas são menos capazes, menos produtivas ou menos dignas de cuidado. No campo da saúde, esse preconceito pode se manifestar de diferentes formas: desde barreiras arquitetônicas que dificultam o acesso a serviços, até condutas profissionais que negligenciam a autonomia do paciente, reforçam estigmas ou reduzem sua experiência de adoecimento apenas à deficiência.

Como futuros médicos, é essencial reconhecer que a atenção integral à saúde de pessoas com deficiência exige mais do que o conhecimento biomédico: demanda sensibilidade ética, postura inclusiva e práticas comunicacionais que respeitem a singularidade de cada paciente. Superar o capacitismo é, portanto, um compromisso com os princípios de equidade do SUS e com a construção de relações terapêuticas baseadas na dignidade, no respeito e na autonomia.

Nesta atividade, meus alunos da disciplina de Diversidade Étnica e Cultural na Medicina trabalharam em grupos analisando casos clínicos de situações-problema nos quais situações de capacitismo estavam presentes. O objetivo foi identificar essas situações, discutir como elas impactam o cuidado em saúde e propor alternativas para uma prática profissional ética, inclusiva e humanizada. O presente registro foi realizado coma turma MED/UFPB 120.

A atividade denominada “Percurso da Atenção” teve a duração de 30 minutos e consistiu na divisão da turma em quatro grupos de oito alunos. Cada grupo recebeu uma vinheta contendo a breve descrição de uma situação simulada relacionada à experiência de um paciente com deficiência no sistema de saúde: uma pessoa surda em pronto-atendimento sem intérprete de Libras; uma pessoa com deficiência visual com amaurose completa precisando compreender instruções de uso de medicação; uma pessoa com deficiência intelectual acompanhada por familiar, em que o médico se dirigia apenas ao acompanhante; e uma pessoa cadeirante tentando realizar uma consulta em hospital com escadas.

A tarefa dos grupos foi mapear as barreiras capacitistas presentes em cada situação — físicas, comunicacionais, institucionais e atitudinais —, discutir de que forma essas barreiras afetavam o direito à saúde e, por fim, pensar em duas estratégias práticas que o futuro médico poderia adotar para reduzir tais barreiras.

Situação 1

O grupo analisou a vinheta de um homem surdo que chegou sozinho ao pronto atendimento com dor torácica intensa. A comunicação com a recepcionista e com a equipe de triagem se mostrou falha, pois ninguém compreendia Libras. O paciente tentou utilizar a escrita, mas o nervosismo o atrapalhou, comprometendo a coleta da história clínica e a segurança do atendimento.

Na identificação das barreiras, os estudantes destacaram diferentes dimensões. Um participante afirmou que a “voz” do paciente havia sido silenciada pela falta de acessibilidade. Outro ressaltou a presença de barreiras de comunicação e institucionais, expressas na ausência de profissionais capacitados em Libras e na burocracia que excluía o paciente do cuidado. Uma participante complementou apontando a barreira atitudinal, quando o profissional ignorava o paciente e falava apenas com o acompanhante, além da barreira organizacional, marcada pela inexistência de protocolos inclusivos e de estratégias alternativas de comunicação.

Quanto aos impactos na saúde e nos direitos, um dos estudantes destacou que a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência não vinha sendo efetivamente cumprida. Outro enfatizou os riscos concretos de diagnósticos tardios, prescrições inadequadas e a sensação de não acolhimento, fatores que poderiam levar o paciente a evitar buscar atendimento e ampliar sua exclusão no sistema de saúde.

Na discussão sobre estratégias de enfrentamento, um dos participantes sugeriu medidas práticas que poderiam ser adotadas pelo futuro médico, como a capacitação em Libras, o uso de materiais visuais — cartazes, pranchas ou aplicativos — e recursos que auxiliassem o paciente a expressar sintomas e intensidade da dor. Outro estudante propôs a inclusão de disciplinas de Libras voltadas especificamente para a prática médica, organizadas em módulos contínuos ao longo da graduação, bem como a garantia de intérpretes em regiões com maior demanda de pessoas surdas.

Na síntese final, os estudantes concluíram que a ausência de acessibilidade comunicacional, institucional, atitudinal e organizacional comprometia diretamente o direito à saúde da pessoa surda. Observaram que a falta de preparo profissional e de protocolos inclusivos agravava desigualdades e fragilizava o cuidado. Por outro lado, apontaram soluções práticas e estruturais, desde a capacitação em Libras até mudanças curriculares e organizacionais, ressaltando que a equidade e o acolhimento deveriam estar no centro das práticas em saúde.

Situação 2

O caso inicial apresentado trouxe a situação de um homem surdo que chegava sozinho ao pronto atendimento com dor torácica intensa. A comunicação com a recepcionista e com a equipe de triagem se mostrou falha, já que ninguém compreendia Libras. O paciente tentou utilizar a escrita, mas o nervosismo atrapalhou, comprometendo a coleta da história clínica e a segurança do atendimento.

Em seguida, o grupo trabalhou outra vinheta, sobre uma pessoa cega que precisava compreender as instruções de uso de uma medicação. Os participantes identificaram diferentes barreiras capacitistas. Um dos destaques foi a barreira atitudinal, exemplificada pelo relato de infantilização e de desconfiança quanto à autonomia de pessoas com deficiência visual. Foi citada a experiência vivenciada em visita a um instituto para cegos, em que a coordenadora relatou situações nas quais médicos não olhavam diretamente para a paciente durante a consulta, dirigindo-se apenas ao acompanhante. Esse comportamento desconsiderava a capacidade da pessoa de relatar seus sintomas. Outro exemplo apontado foi a omissão, por parte de uma médica, da coleta de informações sobre vida sexual ativa de uma paciente cega durante um exame ginecológico, pressupondo que ela não tivesse interesse sexual, o que evidenciava um preconceito baseado unicamente na deficiência.

Também se discutiu a barreira comunicacional, representada pela ausência de bulas e instruções acessíveis. Participantes ressaltaram que os profissionais, em geral, entregavam apenas a prescrição escrita, sem fornecer orientações claras, o que limitava a compreensão do paciente sobre o uso da medicação. Foi lembrado que, embora haja normas da Anvisa que estabelecem a rotulagem de medicamentos em braille, esse recurso ainda se mostrou insuficiente. Essa limitação, segundo os alunos, colocava os pacientes cegos em situação de dependência de terceiros e de vulnerabilidade a erros de dose, atrasos e baixa efetividade do tratamento.

Outros participantes destacaram soluções criativas e de baixo custo já observadas na atenção básica, como o uso de recipientes diferenciados por cores ou texturas, que poderiam ser adaptados para pessoas com deficiência visual. Ressaltaram ainda a necessidade de ampliar a educação em saúde por meio de comunicação acessível, com recursos de áudio, envio de prescrições em formatos digitais e utilização de tecnologias assistivas, como aplicativos de leitura de tela e inteligência artificial, que já faziam parte do cotidiano de muitas pessoas cegas.

Além disso, discutiu-se que a barreira institucional se evidenciava quando serviços de saúde não garantiam esses recursos, descumprindo normas legais e negando o direito constitucional à saúde. Foi reforçado que a responsabilidade pela inclusão não deveria ser atribuída à pessoa com deficiência, mas à sociedade e às instituições, que precisavam oferecer as condições e tecnologias necessárias.

Na dimensão filosófica e reflexiva, um dos participantes citou Schopenhauer, lembrando que “o homem não vê nada além daquilo que o campo da sua visão permite enxergar”. A fala foi utilizada para ilustrar como o capacitismo se originava de uma visão limitada, que desconsiderava outras realidades e restringia o acesso pleno à saúde.

Nas propostas de estratégias, os alunos destacaram que o profissional de saúde deveria assumir o papel de agente de transformação, adaptando a comunicação, valorizando a autonomia do paciente e utilizando meios práticos de inclusão. Foram mencionadas medidas como a padronização de recursos acessíveis na formação médica, o fortalecimento do uso de tecnologias assistivas e a ampliação da comunicação digital. Por fim, enfatizou-se que o capacitismo persistia em parte porque pessoas com deficiência não constituíam um grupo com forte representação política, o que contribuía para a negligência dos seus direitos. Os estudantes concluíram que o combate ao capacitismo exigia colocar-se no lugar das pessoas com deficiência, garantindo-lhes cidadania plena, acesso universal à saúde e participação social efetiva.

Situação 3

A atividade iniciou-se com a apresentação do caso do senhor João, agricultor aposentado de 80 anos, que procurou a unidade de saúde relatando dor abdominal persistente há duas semanas, associada a náuseas e perda de apetite. Durante a consulta, o médico afirmou que “nessa idade é normal sentir dor aqui e ali, o corpo já não é o mesmo” e prescreveu apenas um analgésico leve, sem solicitar exames complementares. O paciente, inseguro com a persistência da dor, temeu que fosse algo mais grave. O grupo discutiu como esse caso ilustrava claramente uma situação de etarismo, em que a idade foi utilizada como justificativa para minimizar queixas clínicas, retardando o diagnóstico e comprometendo a qualidade do cuidado.

Na sequência, os estudantes revisitaram outras vinhetas da atividade sobre capacitismo. Foi relembrado o caso de uma pessoa cadeirante que tentou realizar uma consulta em um hospital com escadas, enfrentando barreiras físicas pela ausência de rampas e elevadores, comunicacionais pela falta de informações prévias sobre acessibilidade, institucionais por negar o direito constitucional à saúde, e atitudinais, quando a equipe de saúde tratava a situação como pontual, sem reconhecer que milhões de brasileiros vivem com deficiência.

Outro caso analisado foi o de um homem surdo que chegou sozinho ao pronto atendimento com dor torácica intensa. A comunicação com a recepcionista e com a equipe de triagem foi falha, pois ninguém compreendia Libras. O paciente tentou se comunicar por escrito, mas o nervosismo prejudicou a clareza das informações, comprometendo a anamnese e a segurança do atendimento. Os estudantes identificaram barreiras comunicacionais, institucionais e atitudinais, além da ausência de protocolos inclusivos. Eles ressaltaram que a falta de preparo profissional colocava em risco o diagnóstico e a adesão ao tratamento. Propuseram estratégias como a inclusão de disciplinas de Libras na graduação em Medicina, capacitação continuada, presença de intérpretes em regiões de maior demanda, bem como o uso de recursos visuais e aplicativos que auxiliassem o paciente a expressar sintomas e intensidade da dor.

Também foi discutido o caso de uma mulher cega que precisava compreender instruções de uso de medicação. Os estudantes apontaram como barreira atitudinal a infantilização e a desconfiança em relação à autonomia da paciente, frequentemente ignorada em consultas médicas. Destacaram ainda a ausência de bulas acessíveis em braille ou de explicações detalhadas pelos profissionais de saúde. Relatos incluíram experiências de exclusão em consultas ginecológicas, quando pressupostos capacitistas levaram à negligência de cuidados preventivos. Os alunos sugeriram estratégias práticas de baixo custo, como o uso de embalagens com texturas diferenciadas ou recursos digitais com leitura automatizada, além de uma comunicação em saúde adaptada, com explicações claras e detalhadas.

Outro grupo analisou a vinheta de uma pessoa com deficiência intelectual acompanhada por familiar, em que o médico se dirigia apenas ao acompanhante. Foram identificadas barreiras atitudinais, ao desconsiderar a autonomia do paciente; físicas, relacionadas ao ambiente confuso e pouco adaptado; institucionais, pela ausência de protocolos específicos no prontuário e de agendas flexíveis para esse público; e comunicacionais, quando a voz do paciente foi invisibilizada. Os estudantes destacaram que tais práticas violavam os princípios de dignidade, equidade e participação ativa previstos na Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e na Lei Brasileira de Inclusão. Como estratégias, sugeriram que os profissionais se dirigissem primeiramente ao paciente, adaptassem a linguagem quando necessário e utilizassem recursos visuais de apoio. Reforçaram também a importância de formação em comunicação inclusiva e escuta ativa, bem como de currículos médicos que contemplem práticas acessíveis e inclusivas.

Na conclusão da atividade, os estudantes refletiram que a superação do etarismo e do capacitismo na atenção à saúde exigia mudanças de postura simples, como olhar para o paciente, dirigir a ele a palavra e respeitar sua autonomia, mas também transformações estruturais, como a inclusão de protocolos, tecnologias assistivas e formação profissional contínua. Reforçaram que acompanhantes deveriam ser vistos como apoio e não como substitutos da voz da pessoa com deficiência. Destacaram que toda pessoa tinha o direito de ser ouvida, compreendida e respeitada em sua singularidade.

Por fim, um dos alunos compartilhou uma experiência vivida em uma visita a uma rede de atenção a pessoas cegas, na qual uma funcionária alertou os futuros médicos: “Tratem o paciente como igual, falem diretamente com ele e não apenas com o acompanhante”. Essa fala foi tomada como um lembrete fundamental de que a responsabilidade pela inclusão cabia à sociedade e às instituições de saúde, e que os futuros médicos deveriam assumir o compromisso de promover uma atenção integral, equitativa e humanizada.

Situação 4

Na atividade, um estudante analisou a vinheta de uma pessoa cadeirante que tentou realizar uma consulta em um hospital que possuía apenas escadas. A cena ilustrou de forma evidente como a falta de acessibilidade comprometia o direito ao cuidado em saúde.

O aluno identificou diferentes barreiras capacitistas presentes na situação. A barreira física apareceu na ausência de rampas, plataformas ou elevadores que garantissem o acesso digno ao serviço. A barreira comunicacional ficou evidente pela falta de informações prévias sobre as condições de acessibilidade do hospital, como rotas e estruturas adaptadas. Já a barreira institucional se expressou na contradição entre a previsão constitucional do direito universal à saúde e a realidade de exclusão gerada pela ausência de acessibilidade. Por fim, a barreira atitudinal foi percebida na postura de profissionais que tratavam o problema como um caso isolado, sem considerar que pessoas com deficiência representam cerca de 10% da população brasileira, aproximadamente 24 milhões de cidadãos.

O estudante destacou também os impactos dessas barreiras sobre o direito à saúde. Segundo sua análise, a negação de acessibilidade poderia gerar desmotivação do paciente em continuar o tratamento, além de sentimentos de exclusão, humilhação e desvalorização. Apontou prejuízos diretos à saúde psicossocial e restrições à cidadania, já que o direito constitucional à saúde não era efetivado. Enfatizou ainda que a falta de acessibilidade favorecia atrasos ou abandono de tratamentos de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, agravando quadros clínicos, além de violar princípios fundamentais do SUS, como a universalidade e a equidade.

Por fim, o estudante propôs estratégias para a superação dessas barreiras. Entre as estratégias imediatas, citou a possibilidade de realizar consultas em ambientes acessíveis, como no térreo, a oferta de teleconsultas e a importância da escuta ativa, valorizando a experiência e as necessidades do paciente. Já como estratégias estruturais, defendeu o papel do médico como agente de transformação institucional, registrando e comunicando formalmente às autoridades a falta de acessibilidade, bem como exigindo adequações. Ressaltou ainda a necessidade de implementar efetivamente a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), em especial o artigo 27, que garante acessibilidade física nos serviços de saúde.

Considerações Finais

A atividade evidenciou como o capacitismo e o etarismo permanecem presentes no cotidiano da atenção à saúde, manifestando-se por meio de barreiras físicas, comunicacionais, institucionais e atitudinais que limitam o acesso, fragilizam a qualidade do cuidado e violam direitos fundamentais. Os casos analisados demonstraram que a ausência de acessibilidade compromete não apenas a experiência imediata do paciente, mas também sua autonomia, autoestima, continuidade de tratamento e cidadania, contrariando os princípios constitucionais e as diretrizes do SUS.

As discussões em grupo permitiram que os estudantes reconhecessem o impacto dessas barreiras na vida de milhões de brasileiros, refletindo sobre como práticas aparentemente simples — como dirigir a palavra ao paciente, adaptar a linguagem, utilizar recursos inclusivos ou garantir rampas e intérpretes — podem transformar a experiência do cuidado em algo mais digno, equânime e humanizado.

Ficou evidente, ainda, que o futuro médico precisa assumir um papel ativo como agente de transformação, tanto no microcontexto da consulta quanto no âmbito institucional da saúde, atuando para garantir acessibilidade, denunciar falhas estruturais e contribuir para a implementação efetiva da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015).

Portanto, a atividade reforçou que a superação do capacitismo exige não apenas mudanças estruturais, mas também mudanças de atitude no encontro clínico. Ao promover a escuta ativa, respeitar a autonomia do paciente e adotar estratégias inclusivas, os profissionais de saúde contribuem para um cuidado mais justo e humano, alinhado aos princípios de universalidade, equidade e integralidade que orientam a saúde no Brasil.